Viúva reconstrói rotina para filho autista lembrar do pai após tragédia aérea em Vinhedo: 'A vida segue'
Viúva recria rotina para filho autista lembrar do pai

O cheiro de café passado ainda invade a cozinha às 6h15. O menino — que não gosta de barulhos altos — espera sentado no mesmo lugar, com os pés balançando sem tocar o chão. A cena se repete diariamente na casa de Vinhedo, interior de São Paulo, mas faltava alguém. Faz exatamente um ano que o avião particular caiu, levando consigo o pai da criança, empresário de 38 anos.

"Inventamos rituais", conta a viúva, de 35 anos, enquanto ajusta a foto do marido na parede — uma das 12 espalhadas pela casa. "Coloco a camiseta dele debaixo do travesseiro do Pedro, deixamos o tênis favorito na sapateira... São pequenas âncoras para a memória."

Quando o mundo desaba — e você precisa reconstruí-lo

Pedro tem 9 anos e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Para ele, mudanças bruscas são como terremotos emocionais. A mãe precisou virar arquiteta de um novo cotidiano:

  • Às terças, dia do acidente, comem o prato preferido do pai: strogonoff com batata palha (que o menino detesta, mas aceita "por ele")
  • Nas manhãs de sábado, repetem o passeio ao parque — agora com um ursinho de pelúcia no banco do carro
  • O tablet ganhou vídeos caseiros do pai cantando "parabéns" em festas infantis

"Ele não fala sobre a saudade, mas desenha aviões que viram pássaros", revela a mãe, mostrando uma série de rabiscos coloridos. Numa folha, uma figura grande segura a mão de uma menor sob um sol com olhos.

Os desafios invisíveis

Terapeutas alertam: crianças neuroatípicas processam o luto de forma única. Algumas perguntas do menino surpreendem:

  1. "Quando papai vai terminar de viajar?" (3 meses após o acidente)
  2. "Se eu ficar muito quieto, ele me escuta?" (durante uma tempestade)
  3. "Posso guardar meu abraço pra quando ele voltar?" (ao ver o casaco favorito do pai)

A psicóloga que acompanha a família explica: "Crianças com TEA muitas vezes interpretam a morte como ausência temporária. Requer abordagens concretas — mostrar urnas ou dizer 'o corpo parou' pode gerar terror, não compreensão."

O voo que não terminou

O Cessna 310 decolou de São José dos Campos em 7 de agosto de 2024 para voo particular. Às 10h23, a torre perdeu contato. A queda em área rural de Vinhedo deixou três mortos — incluindo o controlador de voo que era primo do empresário.

"Às vezes Pedro pergunta se o céu dói", diz a mãe, enxugando as mãos no avental. Ela criou uma metáfora: "Papai virou estrela-postal. Se você sussurrar, ele manda luz de volta."

Na última semana, o menino começou a colocar mensagens em balões e soltá-los no jardim. Nenhum retornou — mas ele insiste. "Talvez amanhã", diz, com a persistência típica do espectro.

A família aguarda ainda as conclusões do relatório final do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos). Suspeita-se de falha mecânica nas asas.