
O sol escaldante do sertão piauense testemunhou algo extraordinário nesta manhã de sábado. Enquanto bandeiras tremulavam ao vento, uma multidão silenciosa – coisa rara num desfile patriótico – acompanhava com olhos marejados a passagem de um pelotão diferente. Não eram soldados comuns. Eram colegas de farda que marchavam com um vazio no peito, carregando a memória de quem não estava mais ali.
Daiane Oliveira. O nome ecoou pelas ruas de Parnaíba como um mantra, um lembrete doloroso do preço que algumas mulheres pagam simplesmente por servir e proteger. Aos 34 anos, comandante da Guarda Civil Municipal, ela foi brutalmente assassinada em julho – vítima de feminicídio, segundo as investigações. O suposto autor? O próprio companheiro.
«Ela era guerreira, dedicada, mas acima de tudo era humana», me sussurrou uma colega de corporação, uniforme impecável, maquiagem correndo pelo rosto. «Ver essa homenagem hoje… dói, mas também cura um pouco».
Um desfile que virou memorial
O tradicional evento cívico, que normalmente exalta heróis distantes e batalhas históricas, desta vez celebrou uma heroína de carne e osso. Alguém que até recentemente patrulhava essas mesmas ruas. A comoção foi palpável quando um estandarte com o rosto de Daiane desfilou na avenida, seguido por dezenas de guardas municipais com expressões sérias – alguns claramente lutando contra as lágrimas.
Números oficiais? Cerca de 1,2 mil pessoas marchando, segundo a organização. Mas números não capturam o peso emocional daquele momento. Não descrevem o silêncio respeitoso que substituiu os habituais aplausos festivos.
Além da homenagem: o recado por trás das lágrimas
O subsecretário de Segurança, Charles Silva, não mediu palavras ao discursar. «Este não é apenas um ato de memória, mas de protesto», declarou, voz firme mas quebrada pela emoção. «Violência contra a mulher não é problema doméstico – é crime público, é falha social, é nossa responsabilidade coletiva».
E talvez essa tenha sido a verdadeira revolução silenciosa no desfile deste ano. Entre bandeiras verde-amarelas, discutia-se abertamente um mal que insiste em persistir: a violência de gênero. Transformaram uma data histórica num palco de conscientização urgente.
Familiares de Daiane estavam na tribuna de honra – visivelmente abalados, mas com certo orgulho misturado à dor. «Ela amava esta cidade», contou uma prima à reportagem. «Saber que Parnaíba não a esqueceu… isso significa tudo».
O desfile seguiu com escolas, fanfarras, grupos tradicionais. Mas o fantasma daquela homenagem inicial pairou sobre todos os eventos seguintes. Um lembrete cru de que a pátria não é feita apenas de glórias passadas – mas também das lutas presentes, das perdas recentes, da capacidade de transformar luto em luta.
No final, enquanto o último pelotão se retirava, uma frase ecoou no megafone e pareceu resumir o sentimento geral: «Daiane presente!». E de fato, ela estava. Não uniformizada, mas na memória teimosa de uma cidade que se recusa a normalizar a violência.