
Ela respirava fundo antes de contar. Os olhos, fixos no chão, pareciam reviver cada segundo daqueles 270 dias. Nove meses. Tempo suficiente para gerar uma vida – ou, como no seu caso, para destruir várias.
Aos 34 anos, a indígena da etnia Guarani Kaiowá (que pediu para não ser identificada) descreve o período em que ficou presa numa delegacia do interior como "um filme de terror que nunca acaba". Só que, desta vez, as cenas mais cruéis não eram ficção.
"Eles vinham à noite"
Segundo o relato – que já virou denúncia formal no Ministério Público –, quatro policiais civis e um guarda municipal teriam se alternado nos abusos. "No começo, ameaçavam me matar se eu contasse. Depois, nem isso... Faziam como se fosse normal", desabafa, enxugando as lágrimas com as costas da mão.
Detalhes do caso:
- A prisão ocorreu após confusão em protesto por terras indígenas
- Ela alega que os estupros começaram na primeira semana
- Os agentes usavam o próprio local de trabalho para os crimes
- Nenhum colega teria "percebido" ou intervindo
Não foi só o corpo que ficou marcado. "Até hoje acordo gritando. Meu marido não me toca mais, tem medo de me assustar", conta, enquanto mexe nervosamente num colar de sementes.
O silêncio que dói
O que mais surpreende (ou talvez não, num país onde 60% das denúncias de violência contra indígenas são arquivadas) é o tempo que levou para o caso vir à tona. "Fiquei calada primeiro por medo, depois por vergonha", admite. "Mas aí vi que eles iam fazer isso com outras."
Procuradas, as autoridades locais limitaram-se a dizer que "apurarão com rigor". Enquanto isso, os cinco acusados continuam trabalhando – três deles inclusive com promoção recente.
"É assim desde os portugueses", filosofa a líder comunitária que a acompanha. "Primeiro tomam sua terra, depois seu corpo, depois sua voz."