
Era uma manhã qualquer quando Aruã, um jovem da etnia Xavante, decidiu que faria algo que ninguém em sua aldeia havia feito antes. Pegou seu arco, deixou-o no chão da oca, e partiu. Sem cerimônias. Sem despedidas emocionadas. Apenas a certeza de que seu caminho era outro.
— Você vai voltar? — perguntou sua mãe, tentando disfarçar a voz embargada.
— Não sei — respondeu, sem olhar para trás.
Da floresta para o asfalto
Dez anos depois, Aruã não é mais o mesmo. Troca o cocar por um capacete, o arco por um desfibrilador. Virou socorrista. E dos bons. Quem diria que aquele menino tímido, criado entre cantos ancestrais, seria hoje um dos profissionais mais respeitados do SAMU em Cuiabá?
— Na aldeia, a gente aprende desde cedo a ler os sinais da natureza — explica, enquanto ajusta a pulseira de miçangas que nunca tira do pulso. — Isso me ajuda a perceber quando alguém está mal antes mesmo de reclamar de dor.
O choque cultural que salvou vidas
Os primeiros meses foram duros. Muito duros. Aruã conta que quase desistiu quando viu um paciente pela primeira vez:
- Não sabia se devia cantar os mantras de cura ou aplicar os procedimentos ocidentais
- Sentia falta do cheiro da terra molhada depois da chuva
- As luzes da cidade doíam nos olhos acostumados ao breu da floresta
Mas foi justamente essa dualidade que o tornou único. Enquanto os colegas seguiam protocolos à risca, ele sentia o paciente. Literalmente. Colocava a mão no peito da pessoa e sabia, por alguma sabedoria ancestral, se a situação era grave ou não.
O resgate que mudou tudo
Foi numa madrugada chuvosa que Aruã provou seu valor. Um acidente brutal na BR-163. Três vítimas presas nas ferragens. Quando a equipe chegou, dois colegas entraram em pânico com a cena.
— Eu já tinha visto coisa pior — diz, com um sorriso meio triste. — Quando caçávamos onças, às vezes... bem, isso é outra história.
Enquanto todos hesitavam, ele agiu. Usou técnicas modernas mescladas com conhecimentos tradicionais. Salvou duas vidas naquela noite. Uma delas era um menino de sete anos.
Ironia do destino: o garoto se chamava Jurandir, mesmo nome do irmão mais novo que Aruã deixou na aldeia.
Entre dois mundos
Hoje, dividido entre a cidade e as raízes, Aruã faz ponte entre saberes. Ensina primeiros socorros nas aldeias quando visita sua família. E leva um pouco da cultura Xavante para as aulas de capacitação no SAMU.
— Os brancos acham que sabem tudo sobre medicina — provoca, arqueando a sobrancelha. — Mas quantos de vocês conseguem parar uma hemorragia com folhas de embaúba?
A pergunta fica no ar. Como tantas outras que esse herói discreto nos faz repensar todos os dias.