
O coração da memória argentina perdeu uma de suas batidas mais persistentes. Rosa Roisinblit, aquela mulher de olhar firme e sorriso teimoso que desafiou décadas, nos deixou. Tinha 106 anos — imagine só — e até o fim carregou o título de vice-presidente das Avós da Praça de Maio.
Não foi uma morte qualquer. Foi o silêncio depois de uma vida inteira gritando por justiça. Rosa, como muitas, teve a vida rachada ao meio pela ditadura civil-militar argentina. Em 1978, seu filho Leonardo, a nora Patricia e a pequena Claudia, sua netinha de apenas um mês, foram arrancados do mundo como se fossem apagados a giz.
Ela não aceitou. Transformou a dor em luta, o luto em busca. Junto com outras avós — sim, aquelas mulheres de lenço branco na cabeça que viraram símbolo mundial de resistência — ela não descansou. procurou não só a própria neta, mas centenas de outras crianças sequestradas, apropriadas, apagadas.
O reencontro que moveu montanhas
Em 2000, o impossível aconteceu. Rosa reencontrou Claudia, sua neta. Tinham se passado 22 anos. A menina já era mulher, criada por outros, com outra história implantada nela. Mas o sangue — ah, o sangue — e a verdade têm um chamado que não se cala.
Esse reencontro não foi só dela. Foi uma vitória de todas. Um sinal de que a verdade, por mais enterrada que esteja, um dia respira.
Estela de Carlotto, presidenta das Avós da Praça de Maio, disse numa declaração cheia de peso e afeto: "Rosa era uma lutadora incansável, uma das fundadoras desta casa". E que casa. Uma casa que já restituiu 136 identidades. Que já devolveu a verdade a 136 histórias roubadas.
Um legado que não morre
Rosa não era só uma avó. Era história viva. Memória em pé. Até os 106 anos — repito, porque é de se admirar — ela esteve lá. Nos atos, nas entrevistas, na luta. Mesmo com o corpo frágil, a voz não tremia. A convicção, menos ainda.
O que fica? Fica o exemplo. A lição brutal de que algumas dores não se calam — elas se transformam em ferramentas de mudança. Rosa Roisinblit virou símbolo. E símbolos, ainda que a pessoa se vá, não morrem nunca.
O governo argentino, através da Secretaria de Direitos Humanos, já confirmou que vai homenageá-la. Justo. Necessário. Poucas pessoas numa só vida carregam tanta história e ajudam a mudar tanto a de outros.
O fim da vida dela não é um ponto final. É, talvez, um ponto de virada. Um lembrete de que a luta por memória, verdade e justiça é intergeracional. E que, graças a mulheres como Rosa, ela não recua.