
Todo mundo já viu aquelas cenas: alguém fazendo alguns gestos durante um evento público e a plateia surda acompanhando. Mas será que é só isso? A verdade é que existe um abismo — um daqueles abismos que a gente nem percebe — entre saber se comunicar em Libras e realmente dominar a profissão de intérprete.
E quem me contou isso foi a Ana Lúcia, voluntária há mais de uma década na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos de Presidente Prudente. Ela chega com um sorriso tranquilo, mas quando começa a falar sobre o assunto, a paixão transborda. "As pessoas acham que porque aprenderam o alfabeto manual e algumas saudações já podem se intitular intérpretes", diz, balançando a cabeça. "É como achar que sabe pilotar um avião porque dirigiu um carro pela primeira vez."
Não É Só Gestos, É Cultura
O que muita gente não entende — e isso é crucial — é que Libras tem gramática própria, regionalismos, nuances que fogem completamente da lógica do português. Ana Lúcia explica com uma analogia que ficou na minha cabeça: "Imagina tentar traduzir 'saudade' para o inglês. Não tem equivalente exato, certo? Com Libras é a mesma complexidade, só que multiplicada por dez."
Ela menciona casos embaraçosos que já presenciou: pessoas bem-intencionadas tentando "ajudar" em consultas médicas e cometendo erros que poderiam ter consequências sérias. "Já vi alguém traduzir 'pressão alta' como 'nervosismo' porque não conhecia o sinal específico. O perigo mora aí, nessas pequenas falhas que parecem insignificantes."
O Caminho das Pedras Para Quem Quer Ajudar de Verdade
Mas calma, não é para desanimar! Longe disso. Ana Lúcia é a primeira a incentivar quem quer aprender. "Libras é fascinante, abre portas para conexões incríveis", entusiasma-se. "Só é importante entender que existem níveis de proficiência, assim como em qualquer idioma."
- Curiosidade inicial: Aprender o básico, cumprimentos, o alfabeto manual. Ótimo para quebrar o gelo!
- Fluência conversacional: Conseguir manter diálogos do dia a dia. Já é um avanço e tanto.
- Proficiência técnica: Dominar vocabulário específico de áreas como medicina, direito ou educação.
- Formação profissional: Cursos reconhecidos e muita, mas muita prática supervisionada.
O que me chamou atenção foi a honestidade dela: "Às vezes a pessoa acha que vai aprender em três meses. Leva anos para se tornar realmente bom, como qualquer ofício que vale a pena."
Por Que Isso Importa Tanto?
Presidente Prudente, como muitas cidades do interior, ainda engatinha quando o assunto é acessibilidade. Ana Lúcia conta que a associação vive de doações e trabalho voluntário — e que a demanda só cresce. "Cada novo intérprete formado é uma vitória, mas precisamos de dez vezes mais."
E tem um detalhe que pouca gente considera: a responsabilidade é enorme. Um intérprete em um tribunal, por exemplo, pode decidir o futuro de alguém. Na saúde, pode literalmente salvar vidas. Não é uma atividade para amadores, por melhor que sejam suas intenções.
No final da nossa conversa, Ana Lúcia solta uma frase que resume tudo: "A inclusão de verdade começa quando a gente para de achar que é fácil e assume a complexidade. Aí sim a gente avança." Faz todo o sentido, não faz?