Um debate acadêmico sobre a natureza da dívida pública ganha contornos urgentes diante da crise do Banco Master e dos números impressionantes dos juros pagos pelo Tesouro Nacional. O economista André Lara Resende trouxe à tona uma discussão fundamental: a dívida pública não é apenas passivo do Estado, mas também ativo do setor privado.
O outro lado da dívida pública
Em artigo publicado no Valor Econômico, André Lara Resende retomou a obra clássica de John Maynard Keynes para responder a Samuel Pessoa, da Folha de S.Paulo. O economista destacou com clareza que a dívida pública representa parte da riqueza privada.
"Reduzir a dívida pública reduz também a riqueza privada", explica Lara Resende, defendendo que a tão propalada redução da dívida exige reconhecer essa dualidade. A discussão teórica encontra eco nos números recentes da economia brasileira.
A crise do Master e as ligações políticas
Enquanto economistas debatem teorias, o mercado sente os efeitos concretos da quebra do Banco Master. O rombo a ser coberto pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC) está estimado entre R$ 42 bilhões e R$ 49 bilhões.
O caso expõe entrelaçamentos preocupantes:
- Fundos de pensão de estados e municípios compraram papéis do Master acima do limite de R$ 250 mil de garantia do FGC
- A principal coligação do Centrão (União Brasil e PP) mantinha fortes ligações com o presidente do Master, Daniel Vorcaro
- O senador Ciro Nogueira (PP-PI) apresentou projeto em 2024 para elevar de R$ 250 mil para R$ 1 milhão o teto de garantia do FGC
Vorcaro contratou nomes de peso para defender os interesses do banco: o ex-ministro do STF e atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e o ex-presidente Michel Temer. A tentativa de associação com o BRB, controlado pelo DF governado por Ibaneis Rocha (MDB), foi vetada pelo Banco Central em outubro.
Juros altos: a máquina de concentrar renda
Os últimos dados da dívida pública até setembro revelam números impressionantes. Pelo critério amplo do Fundo Monetário Internacional, o endividamento do setor público brasileiro soma R$ 11,292 trilhões.
Mais alarmante: os dados do Tesouro Nacional indicam que a dívida custou R$ 866,160 bilhões este ano, equivalente a 3,3% do Produto Interno Bruto. Enquanto o PIB deve crescer cerca de 2% este ano, a renda transferida do Tesouro para rentistas supera esse crescimento.
A manutenção da Selic a 15% ao ano alimenta essa transferência, com juros reais abusivos mesmo descontada a inflação de 4,5%. O giro diário dos papéis da dívida pelo Banco Central - que mantém cerca de R$ 1 trilhão em papéis para liquidez - azeita essa máquina de concentração.
O sistema financeiro e a taxação dos isentos
O mercado de papéis privados de renda fixa, incluindo debêntures, CDBs, CRIs e CRAs, representa cerca de 40% dos títulos do mercado segundo a Anbima. Porém, quem garante a liquidez é o giro diário dos papéis da dívida pública.
A reação de partidos da oposição e do Centrão à taxação dos isentos CRIs e CRAs - proposta pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad como medida de justiça tributária - encontra explicação no envolvimento geral no caso Master. Com a taxação, ficaria mais difícil o giro diário de papéis sem lastro adequado.
O filme "A Grande Aposta", disponível na Netflix, oferece paralelos perturbadores com o momento atual, mostrando como o mercado de hipotecas subprime desmoronou nos Estados Unidos em 2007-2008, gerando crise mundial.
Enquanto isso, o Brasil segue flertando com o abismo, facilitando a concentração de renda através de mecanismos financeiros que beneficiam poucos à custa de muitos.