Esperança Garcia: A trajetória da primeira advogada do Brasil
No Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, o Piauí revela uma figura histórica própria que tem ganhado destaque nacional: Esperança Garcia, reconhecida oficialmente como a primeira advogada do Brasil. Em 2022, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) concedeu este título histórico à mulher negra escravizada no século XVIII que desafiou o sistema com uma petição jurídica.
Uma voz contra a escravidão no século XVIII
Esperança Garcia viveu em Oeiras, no Piauí, durante o período colonial brasileiro. Separada à força de seu marido e filhos, ela enfrentou situações de extrema violência que a levaram a escrever uma carta ao então governador da província. Este documento, datado do século XVIII, é considerado pelos especialistas como uma petição jurídica completa.
A carta histórica apresenta todos os elementos de um documento jurídico formal: endereçamento adequado, identificação da autora, narrativa detalhada dos fatos e fundamentação baseada em direitos. Embora não se saiba se seu pedido foi atendido ou se conseguiu reencontrar sua família, o documento permanece como testemunho de sua coragem e consciência de direitos em uma época onde a escravidão era legalizada.
O reconhecimento histórico e seu impacto atual
A pesquisadora Andreia Marreiro, doutoranda em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), participou ativamente do grupo que elaborou o dossiê solicitando o reconhecimento de Esperança Garcia como primeira advogada do estado e do país. Segundo Andreia, Esperança representa uma figura singular na luta por liberdade e direitos, confrontando as estruturas do colonialismo, racismo e sexismo que desumanizavam pessoas negras.
"Esta mulher negra ergueu sua voz e direcionou suas palavras ao governador da província, pedindo providências sobre as violências cometidas contra ela e sua comunidade. Em um período em que a escravidão era prática legalizada, ela se reconheceu como sujeita de direitos e disse à autoridade: ponha os olhos em mim", explica a pesquisadora.
A descoberta da petição escrita por Esperança Garcia ocorreu em 1979, quando o pesquisador Luiz Mott encontrou o documento no Arquivo Público do Piauí. Desde então, movimentos negros passaram a reivindicar sua memória como símbolo da luta contra a escravidão.
Legado educativo e desafios atuais
Andreia Marreiro destaca a importância de preencher as lacunas no ensino sobre Esperança Garcia nas escolas e universidades. "Eu não tive o direito de conhecê-la na escola. Isso não aconteceu por acaso, mas porque a história do Brasil é contada por mãos brancas, como diz a historiadora Beatriz Nascimento", ressalta.
Para o estudante de história Santiago Belizário, coordenador da Frente Negra Revolucionária no Piauí, o resgate da memória de Esperança Garcia é fundamental para o povo negro, que vive um processo de apagamento durante a construção do país. Esperança serve como espelho para piauienses e brasileiros negros que continuam lutando por mudanças sociais, econômicas e culturais.
"Há uma contribuição inestimável do povo negro para o Brasil, que não foi construído somente por pessoas brancas detentoras do poder político e econômico. O grande legado de Esperança é construir a identidade de pessoas com direitos, reivindicar cidadania dentro da lógica escravista", avalia Santiago.
O estudante também aponta que Esperança representa um símbolo de autoestima e consciência racial para jovens negros, especialmente aqueles de baixa renda e pouca escolaridade - grupo que representa 87% dos mortos em ações policiais no Piauí, segundo o relatório Pele Alva da Rede de Observatórios da Segurança.
Memorial Esperança Garcia em Teresina
Em Teresina, o Memorial Esperança Garcia foi inaugurado em 2007 e inicialmente recebeu o nome de Zumbi dos Palmares. O espaço foi renomeado após o reconhecimento oficial de Esperança Garcia como primeira mulher advogada piauiense pela OAB.
Localizado na Avenida Miguel Rosa, no Centro de Teresina, o memorial é administrado pela Secretaria de Cultura do Piauí (Secult) e dedica-se a eventos que resgatam e celebram a cultura de povos de matrizes africanas. O espaço homenageia diversas personalidades negras, incluindo piauienses como Jacinta Andrade, Nêgo Bispo, Sueli Rodrigues e Francisca Trindade, além de figuras internacionais como Bob Marley, Nelson Mandela e Martin Luther King.
Recentemente, o Governo do Piauí investiu R$ 1,6 milhão na reforma e modernização do memorial, com recursos da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB). As melhorias incluíram a construção de um novo palco externo, atualização das instalações elétricas e hidráulicas, regularização do sistema de prevenção e combate a incêndios, além da aquisição de aparelhos de ar-condicionado e bebedouros.
O legado de Esperança Garcia continua a inspirar novas gerações na luta por igualdade racial e reconhecimento dos direitos da população negra no Brasil, demonstrando que vozes que se levantaram no passado continuam ecoando no presente.