Crédito no Brasil: como motor de desenvolvimento virou negócio financeiro
Crédito brasileiro: desenvolvimento ou mercado financeiro?

Uma transformação silenciosa, mas profunda, mudou a natureza do crédito no Brasil nas últimas décadas. O que deveria ser um instrumento para financiar investimentos e promover o desenvolvimento nacional tornou-se principalmente um negócio para o mercado financeiro, deixando a economia real em segundo plano.

Esta inversão de prioridades foi recentemente exposta de forma contundente pelo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, que usou uma metáfora poderosa para descrever o sistema: a caderneta de poupança como um "Robin Hood às avessas".

O mecanismo perverso do crédito brasileiro

Segundo a análise de Galípolo, os mais pobres e desinformados mantêm suas economias na poupança, onde os rendimentos são mínimos, enquanto o crédito barato gerado por esses recursos beneficia setores que nem sempre são prioritários para o desenvolvimento do país. Os pobres acabam financiando o crédito dos ricos, em uma clara transferência de renda invertida.

O fenômeno não é recente. Já na gestão de Pérsio Arida no BNDES, consolidou-se uma visão que tratava a diferença entre os juros do banco de fomento e a Selic como um subsídio a ser corrigido, em vez de uma política de desenvolvimento. O objetivo deixou de ser aumentar investimentos e produtividade para evitar que o crédito público "desorganizasse o mercado".

FGTS e poupança: instrumentos capturados

O padrão se repetiu em outros fronts. Durante o governo Michel Temer, mais de R$ 40 bilhões do FGTS foram liberados em 2017 sob a justificativa de estimular a economia. Posteriormente, na gestão Paulo Guedes, o fundo foi transformado em produto de prateleira do mercado financeiro, com saques anuais institucionalizados e empréstimos usando o FGTS como garantia.

O resultado é que um instrumento criado para dar segurança ao trabalhador tornou-se lastro para aumentar o volume de crédito e o lucro bancário. O mutuário do antigo BNH, o comprador de eletrodomésticos, o pequeno empresário que precisa do Finame e a família que depende do crédito consignado transformaram-se em meros insumos para a engrenagem financeira.

A distorção da política monetária

Esta construção ideológica, iniciada na era Fernando Henrique Cardoso e mantida até hoje - inclusive por governos que se dizem desenvolvimentistas - transformou a política monetária em um regime de proteção ao mercado. O Banco Central passou a enxergar o crédito não como motor da economia, mas como campo de negócios.

A avaliação da política monetária passou a ser feita em função das expectativas do mercado, não do efeito sobre investimento, emprego ou consumo. As consequências são palpáveis: juros altos persistentes, crédito caro, baixo investimento e crescimento medíocre.

Os álibis técnicos que não se sustentam

As justificativas para manter a Selic em patamares elevados frequentemente ignoram a lógica econômica. A análise comparativa entre o final de 2024 e o momento atual revela uma realidade diferente da narrativa oficial.

Com a desvalorização do real no final de 2024, quando o dólar atingiu R$ 6,18, um produto de R$ 1.000 financiado com CDC a 7,91% ao mês resultava em uma prestação de R$ 132,08. Após a alta da Selic e consequente apreciação do real para R$ 5,30 (queda de 14%), o mesmo produto internacional caiu para R$ 857,61.

Embora o CDC tenha subido suavemente para 8,06% ao mês, a prestação caiu para R$ 114,14 - uma redução de 13,8%. O consumidor ganhou poder de compra, contrariando a lógica de que juros altos contraem a demanda via crédito.

Esta análise demonstra que:

  • A Selic alta encareceu muito pouco o crédito, porque o spread bancário absorve as variações
  • A Selic alta valorizou significativamente o câmbio
  • A valorização cambial reduziu preços de bens comercializáveis, derrubando o IPCA
  • A queda da inflação pouco teve a ver com "desaquecer a economia" via juros

O que realmente puxou a inflação para baixo foi o câmbio valorizado, não o aperto monetário no crédito. Paradoxalmente, a Selic alta aumentou o poder aquisitivo - exatamente o oposto do que o Banco Central propõe em sua narrativa.

No final, a pergunta crucial permanece: o crédito existe para desenvolver o país ou para remunerar o mercado financeiro? A evidência dos fatos sugere que, no Brasil atual, a resposta inclina-se decisivamente para a segunda opção.