
O coração do Vale do Paraíba perdeu um de seus maiores tesouros humanos nesta terça-feira (5). Angela Savastano, aquela mulher que respirava cultura popular como quem bebe água, partiu aos 93 anos — deixando pra trás um legado que nem o tempo apaga.
Nascida em 1932, ela era daquelas raridades: uma erudita que falava a língua do povo. Passou décadas garimpando histórias, danças e cantigas que muitos já davam como perdidas. "A memória é frágil, mas a tradição é teimosa", costumava dizer, com aquela voz rouca de quem fumou ideias por uma vida inteira.
Uma vida entre lendas e causos
Quem a conheceu garante: Dona Angela tinha o dom de transformar pesquisa acadêmica em conversa de boteco. Seus livros — sete no total — parecem escritos à luz de lamparina, tão vivos que quase dá pra ouvir o barulho do sanfoneiro ao fundo.
Não foi fácil. Nos anos 60, quando decidiu meter os pés no mato atrás de folclore, muita gente torceu o nariz. "Mulher bonita como você perdendo tempo com essas coisas de caipira", cochichavam. Ela? Ignorou. Com uma bolsa de couro e um gravador que pesava um quilo, rodou o interior paulista como quem vai à guerra — armada apenas de curiosidade.
O que fica
- Organizou o primeiro festival de cultura caipira da região (1978)
- Recuperou 132 cantigas de roda consideradas extintas
- Formou três gerações de pesquisadores no Centro de Estudos do Folclore
Nos últimos anos, mesmo com a saúde frágil, continuava recebendo visitas naquele apartamento cheio de tralhas culturais na Zona Leste de São José. "Minha casa é um museu que pisa em ovos", brincava, referindo-se às pilhas de documentos que ameaçavam tombar a qualquer momento.
A causa da morte não foi divulgada, mas quem acompanhava seu trabalho sabe: era questão de tempo. "Ela já vinha desaparecendo aos poucos, como aquelas cantigas que tanto amava", lamenta Maria do Carmo, ex-aluna e hoje professora na UNESP.
O velório acontece nesta quarta-feira (6) no Cemitério Municipal, a partir das 14h. Em vez de flores, a família pede doações para o Instituto Cultural que leva seu nome — ironicamente, o mesmo que ela fundou com dinheiro da venda de uma coleção de prataria herdada da avó.
O Brasil perde uma guardiã da memória. O céu ganha uma contadora de histórias. E nós? Ficamos com a lição: cultura não é coisa de museu — é matéria viva, que pulsa no cotidiano.