Megavazação de dados atinge plataforma federal de inteligência
Uma auditoria do Ministério da Justiça comandado por Ricardo Lewandowski revelou que dados de milhões de brasileiros podem ter sido usados indevidamente para consultas no Córtex, a megaplataforma de monitoramento do governo federal. O sistema, que reúne informações sobre pessoas, veículos e empresas, foi acessado por contas ligadas a forças de segurança do Governo do Rio de Janeiro.
Escala alarmante das irregularidades
Os números são impressionantes: 69,2 milhões de CPFs foram registrados como autores de 213 milhões de buscas usando uma das chaves de acesso à plataforma. Esse volume de documentos representa aproximadamente um terço de toda a população brasileira, indicando uma violação de dados em massa.
A análise preliminar do ministério apontou fortes indícios de automação das pesquisas, além da geração de CPFs para burlar mecanismos de bloqueio da plataforma. A auditoria examinou 236 dias de buscas realizadas a partir de setembro de 2024.
Investigações criminais em andamento
Paralelamente à auditoria ministerial, a Polícia Federal abriu inquérito para apurar possíveis crimes de inserção de dados falsos em sistema de informação, violação do sigilo funcional e invasão de dispositivo informático. As duas apurações também miram consultas envolvendo PEPs (Pessoas Expostas Politicamente).
O caso ganha contornos políticos significativos, ocorrendo no momento em que o tema da segurança pública opõe o governo Lula a parte dos governadores. A divergência se refletiu na aprovação, na Câmara dos Deputados, da versão modificada do PL Antifacção, medida aplaudida por Cláudio Castro (PL) e considerada uma derrota ao Planalto.
Funcionamento e vulnerabilidades do sistema Córtex
O Córtex teve seu uso regulamentado em 2021, durante o governo Jair Bolsonaro (PL). A plataforma só pode ser utilizada por integrantes de órgãos que firmam convênio com o governo federal para obter informações em tempo real, coletadas por câmeras e outras bases de dados, principalmente sobre pessoas e placas de veículos.
Entre os serviços oferecidos pela plataforma está o cercamento eletrônico, que permite buscar dados de "alvos móveis" e gerar alertas de "alvos com indicativos de criminalidade". No caso da Polícia Militar do Rio, o Córtex é usado para verificar a existência de mandados de prisão ou ordens de internação.
O sistema exige uma chave de acesso e depois o CPF da pessoa que realiza a busca para registro. O Governo do Rio possui duas chaves: uma da PM e outra da Secretaria de Governo. Investigadores inicialmente consideraram que ambas eram da PM, mas a própria polícia fluminense e o Palácio Guanabara já informaram que a chave sob maior suspeita é da Segov.
Pessoas Politicamente Expostas como alvo
Uma das principais preocupações das autoridades é o risco potencial de uso político ou indevido das informações. Parte dos CPFs registrados como autores ou alvos das buscas pertence a Pessoas Politicamente Expostas, categoria que inclui desde vereadores de pequenas cidades até membros da cúpula dos três Poderes.
Na auditoria, o ministério constatou que foram usados 79,9 mil CPFs de pessoas politicamente expostas, número próximo de 60% do total do grupo classificado dessa forma, para realizar aproximadamente 100 mil consultas.
A reportagem identificou casos específicos de uso irregular. O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, teve seu CPF utilizado sem autorização. "Não tinha acesso ao Córtex e fiquei surpreso com a situação", afirmou. Outro caso envolve o CPF de um secretário municipal de Goiás, registrado em 4.044 consultas.
O ex-deputado federal de Mato Grosso do Sul Loester Trutis também foi vítima: foram realizadas 3.689 consultas em nome dele em apenas cinco dias. "Não conheço [Córtex] e nunca fiz pesquisa em nenhum sistema de inteligência usado por qualquer polícia. Meu CPF foi usado irregularmente e isso gera preocupação", declarou.
Respostas institucionais e questionamentos
O Ministério da Justiça afirma que as análises estão em fase preliminar e que nenhuma linha de investigação será descartada. "Medidas administrativas já foram adotadas para preservação da integridade dos sistemas, incluindo bloqueio de acessos, reforço de controles e apuração de responsabilidades individuais", informou a pasta.
Documentos obtidos pela Folha mostram que o ministério e a PF procuraram a PM do Rio sobre o caso. A corporação, no entanto, respondeu em documentos internos que a chave de acesso alvo dos principais questionamentos estaria vinculada ao programa Operação Segurança Presente, coordenado pela Segov.
Em nota, a secretaria da gestão Castro confirmou que foi avisada pela PM em 10 de novembro sobre a investigação. A pasta chefiada pelo ex-deputado federal André Moura disse que começou a levantar informações para responder aos órgãos federais, além de ter pedido a abertura de inquérito da Polícia Civil.
Questionamentos sobre vigilância em massa
O acúmulo de dados na plataforma Córtex levanta sérios questionamentos sobre vigilância em massa e violação da privacidade. Para Pedro Saliba, coordenador de Assimetrias e Poder na Data Privacy Brasil, o caso escancara que o Córtex é um sistema de vigilância "que não tem controle social e accountability".
"O Ministério da Justiça agregou tudo em um sistema, depois capilarizou. Além de dar informações, o sistema está puxando dados, está criando um 'megazord' de vigilância", criticou o especialista.
Enquanto as investigações avançam, permanecem as incógnitas sobre os reais objetivos dos acessos irregulares e o alcance total do vazamento de informações de milhões de brasileiros.