O Supremo Tribunal Federal viveu um momento histórico em novembro de 2025, quando a maioria dos ministros reconheceu pela primeira vez a existência do racismo estrutural no Brasil. No entanto, essa mesma maioria se recusou a declarar o Estado de Coisas Inconstitucional, revelando uma divisão profunda sobre como enfrentar o problema.
O voto que marcou a história
O julgamento da ADPF 973 trouxe à tona uma discussão crucial sobre direitos fundamentais da população negra. A ministra Cármen Lúcia, integrante do tribunal desde 2006, proferiu um voto considerado por muitos como o momento de maior honestidade institucional dos últimos anos.
A ministra citou o rapper Emicida para lembrar que "a felicidade do branco é plena e a do preto é quase". Sua fala mais emblemática ecoou pelos corredores do STF: "Eu não quero viver num país em que a Constituição para o branco é plena e para o negro é quase".
Em seu voto, Cármen Lúcia recorreu a referências literárias que documentam a experiência negra no Brasil. Ela mencionou Carolina Maria de Jesus, escritora que retratou a permanência da exclusão social, e evocou Castro Alves, poeta abolicionista que denunciou a brutalidade da escravidão.
Os números que comprovam a desigualdade
Os dados apresentados durante o julgamento deixaram claro o abismo racial que persiste no país. Jovens negros têm quase três vezes mais chance de serem assassinados do que jovens brancos, enquanto mulheres negras recebem menos da metade do rendimento médio dos homens brancos.
O relator do caso, ministro Luiz Fux, apontou em seu voto a existência de uma "omissão estatal sistêmica" no enfrentamento dessas violações. Ele destacou que pretos e pardos concentram os piores índices sociais, econômicos, educacionais e de saúde, além de serem alvo desproporcional da violência policial.
Os partidos que ingressaram com a ação denunciaram o hiperencarceramento e a letalidade crescente que afetam principalmente a população negra. A geografia da violência no Brasil tem cor e CEP definidos, com operações policiais que aterrorizam comunidades como Penha e Alemão, mas que jamais se repetiriam em bairros de elite como a Faria Lima.
A divisão que impediu medidas mais efetivas
Apesar do reconhecimento unânime do racismo estrutural, cinco ministros rejeitaram a tese do Estado de Coisas Inconstitucional. Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli formaram o grupo que impediu a medida mais contundente.
O voto do ministro Zanin causou desconforto entre especialistas ao argumentar que não há omissão estatal porque o Brasil possui legislações antirracistas. Ele afirmou que as políticas sociais voltadas à população negra já justificariam afastar o Estado de Coisas Inconstitucional, ignorando sua insuficiência e falta de efetividade.
André Mendonça admitiu o racismo estrutural, mas rejeitou o institucional. Nunes Marques negou ambos. Alexandre de Moraes tratou a acusação de racismo institucional como se fosse um ataque às instituições do Estado, enquanto Dias Toffoli partiu para a defesa do Judiciário.
Enquanto Fux, Dino e Cármen Lúcia defenderam o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional e propuseram um plano nacional de enfrentamento ao racismo com participação do Judiciário, a maioria da Corte recuou nesse ponto fundamental.
O significado do julgamento para o futuro
Embora incompleto, o gesto do STF em reconhecer explicitamente o racismo estrutural representa um rompimento com a era da negação. 2025 marca o ano em que a Suprema Corte admitiu, sem disfarces, que a Constituição nunca foi plenamente entregue ao povo negro.
O julgamento será retomado em data futura, mas já deixou claro que há oito votos afirmando que a população negra sofre violações sistêmicas de direitos fundamentais. A contradição está em que, apesar desse reconhecimento, cinco ministros negaram a existência do quadro excepcional que justificaria medidas mais enérgicas.
O espelho da desigualdade racial está no centro da sala. E, ainda que alguns ministros tenham recuado diante do reflexo, o país não pode mais desviar o olhar dessa realidade que persiste décadas após a Constituição de 1988.