O Superior Tribunal de Justiça (STJ) se prepara para analisar nesta semana uma questão tributária que evidencia a insegurança jurídica no ambiente de negócios brasileiro. O caso envolve o direito ao crédito de PIS e Cofins sobre combustíveis, originalmente estabelecido pela Lei Complementar 192 de 2022 e posteriormente suprimido sem o devido respeito aos princípios constitucionais.
Contexto de crise e medidas emergenciais
O cenário que motivou a criação do crédito foi marcado por volatilidade histórica nos preços internacionais do petróleo. A guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, somada aos efeitos econômicos da pandemia, criou uma situação excepcional que demandou ações governamentais.
No Brasil, os governadores congelaram alíquotas de ICMS sobre combustíveis, enquanto o governo federal seguiu uma tradição já estabelecida de intervenções no setor. Desde 2013, o país vem utilizando instrumentos fiscais para amortecer choques no mercado de combustíveis, incluindo:
- Crédito presumido para o etanol (2013)
- Subsídio ao diesel durante a greve dos caminhoneiros (2018)
- Crédito de R$ 3,8 bilhões para o etanol via Emenda Constitucional 123 (2022)
A LC 192/2022, publicada em março de 2022, inseriu-se nesse contexto de medidas emergenciais. A lei instituiu um regime jurídico excepcional com vigência até dezembro do mesmo ano, reduzindo a zero as alíquotas de PIS e Cofins e garantindo expressamente às empresas da cadeia de comercialização o direito de manter os créditos vinculados aos combustíveis.
Trajetória jurídica do crédito tributário
O incentivo fiscal criado pela LC 192 representou uma exceção deliberada ao regime tradicional de não cumulatividade previsto nas leis de 2002 e 2003. Tratou-se de um mecanismo autônomo, distinto do sistema monofásico de tributação e do crédito previsto no artigo 17 da Lei 11.033/2004.
Entretanto, o Poder Executivo editou a Medida Provisória 1.118/2022 em maio do mesmo ano, tentando suprimir o direito criado pela LC 192. Posteriormente, a LC 194, publicada em junho de 2022, restringiu novamente o direito ao crédito, reconhecendo implicitamente que o dispositivo original produzia efeitos concretos de desoneração tributária.
A discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal através da ADI 7.181, movida contra a MP 1.118. O plenário da Corte foi unânime em reconhecer o direito dos adquirentes finais ao crédito de PIS e Cofins sobre combustíveis. O ministro relator Dias Toffoli foi enfático ao afirmar que o legislador tem autonomia para disciplinar a não cumulatividade das contribuições, podendo criar exceções específicas como a prevista na LC 192.
Linha do tempo dos eventos
O caso segue uma cronologia precisa que demonstra a complexidade da questão:
- 11 de março de 2022 - LC 192 entra em vigor e cria o crédito
- 17 de maio de 2022 - MP 1.118 suspende o crédito
- 23 de junho de 2022 - LC 194 revoga o incentivo
- 22 de setembro de 2022 - Termina o prazo de 90 dias
- 27 de setembro de 2022 - MP 1.118 perde eficácia
Com a perda de eficácia da medida provisória, e sem decreto legislativo disciplinando seus efeitos, restabeleceu-se automaticamente a redação original da LC 192. Dessa forma, o crédito foi válido entre 11 e 24 de março e entre 27 de setembro e 31 de dezembro de 2022.
Impactos na segurança jurídica
A controvérsia que chega ao STJ tenta aplicar o Tema 1.093, que trata da impossibilidade de creditamento no regime monofásico, às operações abrangidas pela LC 192. Especialistas consideram essa comparação equivocada, pois as situações são fundamentalmente distintas.
No regime monofásico, há tributação concentrada no produtor ou importador, o que impede créditos nas etapas seguintes da cadeia. Já na LC 192, não há tributação em nenhuma etapa, mas há concessão expressa de crédito. Configura-se, portanto, um regime especial de desoneração integral com preservação de créditos, e não uma simples variação do modelo monofásico.
O Ministério Público Federal, em parecer no Recurso Especial 2.123.838, reconheceu que a LC 192 instituiu uma exceção temporária ao regime monofásico, com o objetivo específico de mitigar os efeitos da alta dos combustíveis.
A decisão do STJ neste caso terá repercussões significativas para a segurança jurídica dos contribuintes brasileiros. O reconhecimento da validade e eficácia do regime excepcional reafirmaria a autonomia do legislador e a importância da confiança legítima dos contribuintes nas normas editadas pelo Estado.
A revogação antecipada de incentivos fiscais sem respeito à anterioridade nonagesimal viola princípios constitucionais fundamentais e reforça a percepção de instabilidade normativa no país. Mais grave ainda é quando o próprio Estado, após reconhecer um direito por lei complementar, busca suprimi-lo sem observar as garantias constitucionais estabelecidas.