O Brasil desenvolveu uma característica peculiar: a capacidade de transformar qualquer tipo de conflito, dúvida ou expectativa em ação judicial. Enquanto outros países resolvem problemas através de regras claras, instituições sólidas e negociações, aqui a solução padrão é sempre a mesma: entrar com um processo na Justiça.
O fenômeno da judicialização excessiva
Qualquer situação parece justificar uma ida ao Judiciário. Se uma pessoa tropeça em uma calçada, processa a prefeitura. Se um voo atrasa, processa a companhia aérea. Se o governo regula algo, alguém entra com ação. Se não regula, também processa por isso. Existe até o processo contra a decisão do processo, criando um ciclo interminável.
Esse comportamento transformou o Poder Judiciário na sala do síndico de um grande condomínio nacional. Para lá vão desde conflitos sobre vazamentos em apartamentos até questões complexas como regulação de inteligência artificial, orçamento de rodovias e disputas eleitorais que deveriam ser resolvidas no campo político.
As causas racionais do litígio
A explicação para esse fenômeno vai além de uma suposta cultura litigiosa do brasileiro. A realidade é mais complexa: o brasileiro litiga porque é racional fazê-lo. O litígio se tornou o único caminho conhecido, gratuito ou quase, socialmente validado e institucionalmente recompensado.
A insegurança jurídica funciona como uma máquina eficiente de criar processos. Regras que mudam por entendimentos jurisprudenciais, contratos que se transformam em peças de ficção científica e normas que só existem plenamente após múltiplas decisões colegiadas tornam quase impossível qualquer planejamento estratégico ou análise econômica consistente.
Consequências econômicas da judicialização
O efeito econômico desse ambiente é bem conhecido: custos de transação elevados, investimentos reduzidos, produtividade deprimida. O país consegue tributar a atividade produtiva não apenas com impostos formais, mas com a incerteza gerada pela judicialização excessiva.
Cada decisão judicial reescreve um pedaço da ordem econômica. Uma liminar altera preços, um agravo modifica incentivos, uma sentença impacta a dinâmica de setores inteiros. Diariamente, o Judiciário acaba fazendo mais política pública que o Executivo, mais regulação que as agências e mais revisão normativa que o Legislativo.
O mercado do litígio
O Brasil formou um verdadeiro setor industrial para abastecer a judicialização. Somos o único país onde o número de faculdades de Direito parece competir com o número de municípios. Mas essa não é a causa do problema, e sim sua consequência.
O país forma advogados litigantes porque litigar é o que funciona. Os incentivos estão todos alinhados nessa direção. Não por malícia ou vocação beligerante, mas porque o ambiente institucional transformou o litígio em recurso econômico, quase uma commodity.
Soluções possíveis
A solução não está em tentar mudar a cultura através de decretos, workshops ou campanhas educativas. A resposta mais óbvia e negligenciada é: regular melhor. Regular com menos ambiguidade, menos voluntarismo, menos criatividade normativa e mais clareza.
É fundamental criar mecanismos que premiem a composição e desencorajem o uso estratégico do litígio. E, uma vez estabelecida uma regulação adequada, mantê-la estável, sem permitir que juízes a interpretem de maneira criativa.
O artigo foi escrito por Luciana Yeung, Professora Associada e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper, com publicação em 21 de novembro de 2025. A análise utiliza o rigor e método acadêmicos, mas com linguagem acessível para todos os públicos.