
Olhando para trás, é quase um paradoxo do caramba. A década de 1970 no Brasil foi, sem dúvida, o período mais brutal da ditadura militar. E ao mesmo tempo — pasmem — foi justamente nesse caldeirão de repressão que começaram a brotar, timidamente, os primeiros sinais de que a democracia um dia voltaria.
O ano de 1970 chegou com o país completamente amordaçado pelo AI-5. A censura não era só política, não. Ela ditava até o comprimento das minissaias e o que você podia cantar no chuveiro. O medo tinha gosto de café amargo na boca das pessoas.
O sufoco e os suspiros de liberdade
Mas sabe como é o ser humano? Quanto mais apertam, mais a gente busca brechas. E as brechas apareciam nos lugares mais inusitados. Nos festivais de música, onde compositores falavam em códigos que todo mundo entendia. Nos jornais underground que circulavam de mão em mão. Nos saraus clandestinos em porões de universidades.
Eu me lembro — era só um moleque na época — de ver meu tio chegando em casa com um disco do Chico Buarque escondido dentro da camisa. "É proibido, mas é nosso", ele sussurrava, como se estivesse cometendo o maior dos crimes. E de certa forma, estava.
Quando a pressão estoura por todos os lados
O milagre econômico começou a mostrar suas rachaduras por volta de 1973. A inflação voltou com tudo, e aquela história de "pra frente Brasil" começou a fazer água. A classe média, que antes apoiava o regime "por segurança", começou a sentir no bolso o que antes só os "subversivos" sentiam na pele.
E aí veio a crise do petróleo. Aquilo foi um soco no estômago da economia. Do dia pra noite, o Brasil percebeu que não era tão independente quanto os generais pregavam.
As fissuras no muro
Em 1974, algo mudou. O general Geisel assumiu prometendo "distensão lenta, gradual e segura". Alguns riram, outros torceram o nariz. Mas a verdade é que era o primeiro sinal oficial de que até os militares sabiam que não dava mais pra segurar a onda.
As eleições daquele ano foram um tiro no pé do regime. A oposição — sim, ainda existia uma oposição! — cresceu assustadoramente. Foi quando a sociedade civil começou a perceber que talvez, só talvez, ainda houvesse espaço para respirar.
E que respiro foi aquele! Surgiram novos jornais, revistas, grupos de discussão. A Igreja Católica, que antes flertava com o regime, começou a virar a casaca. As Comunidades Eclesiais de Base viraram centros de resistência pacífica.
A arte como trincheira
Não foi nos gabinetes que a redemocratização começou, sabiam? Foi nos palcos, nas galerias de arte, nas rodas de samba. O teatro, principalmente, virou campo de batalha. Peças como "Rasga Coração" do Oduvaldo Vianna Filho mostravam nas entrelinhas o que não podia ser dito nas manchetes.
Os cineastas do Cinema Novo, mesmo com um pé atrás, começaram a fazer filmes que cutucavam a ferida. "Eles Não Usam Black-Tie", do Leon Hirszman, mostrou que a classe operária ainda existia, mesmo que o regime preferisse ignorar.
O fim do túnel
Chegando em 1978, a coisa já estava fervendo. A Anistia já era discutida abertamente nas mesas de bar. Os exilados começavam a voltar — alguns com histórias que pareciam ficção científica.
O movimento sindical acordou do coma. Líderes como um tal de Lula — vocês devem ter ouvido falar — começaram a organizar greves que pararam o ABC paulista. E o mais importante: a população percebeu que greve não era mais crime.
Quando a década terminou, em 1979, o Brasil era outro país. Ainda uma ditadura, sim. Mas uma ditadura com prazo de validade vencido. As Diretas ainda demorariam, mas o caminho já estava traçado.
Olhando hoje, dá pra ver claramente: foi no momento mais escuro que a luz começou a nascer. Uma lição que, convenhamos, o Brasil parece precisar reaprender a cada geração.