Era quase um ritual sagrado. Todo dia, sem falta, o violão saía do estojo antes do pôr do sol. Lucio Yanel — aquele músico argentino que fez sucesso nos anos 80 com canções que embalaram gerações — preparava seu tributo diário. Não para plateias, não para fãs. Para ela. Sua esposa, María, que há cinco anos enfrentava o Alzheimer com uma coragem que deixava médicos impressionados.
Na tarde desta segunda-feira (11), o ritual foi interrompido. María faleceu em sua casa em Porto Alegre, cercada por fotos, partituras e o silêncio de um violão que, desta vez, ficou encostado no canto.
"Ela ainda cantarolava"
Vizinhos contam que, mesmo nos piores dias da doença — quando María já não reconhecia nem os próprios filhos —, algo mágico acontecia quando Lucio começava a tocar. "Os dedos dela mexiam no ar, como se estivesse digitando no piano imaginário", lembra Dona Iolanda, da casa ao lado. "E às vezes saía um "mi corazón" sussurrado, quase imperceptível."
Os médicos chamam de "memória musical" — uma das últimas coisas que o Alzheimer costuma apagar. No caso de María, resistiu até o fim. "Tinha dias que ela esquecia como engolir, mas lembrava a letra inteira de "La Flor de la Canela", conta emocionado o filho mais velho do casal, Javier.
O adeus que virou música
Na última semana, quando os sinais ficaram claros, Lucio — normalmente discreto — fez algo inesperado. Chamou os netos, os amigos próximos e organizou uma última serenata coletiva no jardim. "Foi como se ele soubesse", diz a enfermeira que acompanhava María. "Naquela noite, ela abriu os olhos por um instante, olhou para todos e sorriu. No dia seguinte, não acordou."
O velório será restrito, mas já se fala num tributo público nas ruas do bairro Moinhos de Vento — onde por anos as serenatas noturnas viraram atração turística sem querer. "Tinha gente que marcava passeio só pra tentar escutar", ri o dono do bar da esquina. "Agora a rua vai ficar quieta demais."
Enquanto isso, nas redes sociais, fãs começam a usar a hashtag #SerenataParaMaría — postando covers das músicas que o casal tanto amava. Uma despedida em tom maior, para uma história que, mesmo com Alzheimer, nunca perdeu a afinação.
