Quinze anos após seu lançamento original nos Estados Unidos, chega ao Brasil a edição de "Mercadores da Dúvida", obra fundamental que expõe as táticas utilizadas por indústrias para semear incertezas sobre fatos científicos consolidados. O livro, escrito pelos historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway, ganha publicação pela Quina Editora em um momento crucial: durante a realização da COP30 no Brasil.
A estratégia que se repete
Resultado de cinco anos de investigação minuciosa, a obra revela conexões chocantes entre as campanhas de negação científica promovidas pela indústria do tabaco e, posteriormente, pelos setores de combustíveis fósseis. Os autores analisaram milhares de documentos que comprovam como cientistas renomados, muitos deles físicos formados durante a Guerra Fria, se aliaram a corporações para distorcer evidências e atrasar regulamentações.
"Descobrimos que não era apenas uma história sobre as peculiaridades do aquecimento global", explica Naomi Oreskes em entrevista exclusiva. "Quando fizemos essa descoberta, mostramos que não se tratava apenas de ciência. O livro expõe como a mesma estratégia usada pela indústria do cigarro, inclusive os mesmos atores, foi utilizada pelo setor de combustíveis fósseis."
O impacto atual do negacionismo
Segundo Oreskes, a atualidade do livro se deve a dois fatores principais: a realização da COP30 no Brasil e a influência de Donald Trump no cenário político americano. "Os mercadores da dúvida agora comandam o governo dos EUA", alerta a professora de Harvard. "Temos negacionistas das mudanças climáticas nos mais altos escalões americanos."
As consequências práticas dessa situação são visíveis no recuo de compromissos ambientais. "Agora vemos líderes empresariais dizendo 'Ah, o aquecimento global não é tão ruim assim'. E testemunhamos as indústrias recuando de suas promessas anteriores de redução de emissões com uma desculpa atrás da outra", relata a historiadora.
Ideologia acima do dinheiro
Uma das revelações mais surpreendentes da pesquisa foi descobrir que a motivação principal dos cientistas envolvidos nessas campanhas não era financeira, mas ideológica. "Essa foi a outra grande descoberta do livro", confirma Oreskes. "Queríamos entender por que esses homens faziam aquilo. Afinal, eram cientistas, certo? Parecia que estavam traindo a causa à qual dedicaram suas vidas."
Os arquivos analisados mostraram que muitos desses pesquisadores acreditavam genuinamente que a regulamentação governamental representava uma ameaça à liberdade política. "Esses homens eram cientistas da Guerra Fria. Acreditavam que o trabalho deles durante o conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética havia ajudado a conter o comunismo", explica a autora.
Oreskes é enfática ao diferenciar discordância política de distorção científica: "Podemos discutir sobre quão eficientes são os mercados. É uma questão legítima. Mas, independentemente de sua opinião sobre isso, não há desculpa para mentir sobre a ciência. Não há desculpa para deturpar as evidências científicas."
COP30 e o futuro do clima
Diante da COP30, a perspectiva de Oreskes é realista, embora não otimista. "Não acho que temos motivos racionais para otimismo agora", admite. "Estamos lutando contra forças incrivelmente poderosas que provaram, nos últimos 15 anos, que farão quase tudo para preservar o status quo do qual se beneficiam."
A historiadora critica o próprio formato das conferências climáticas: "O processo da COP falhou. Ele foi cooptado por interesses ligados aos combustíveis fósseis. Basta olhar para onde aconteceram as últimas reuniões. Em países produtores de petróleo."
Como alternativa, Oreskes sugere maior foco em ações locais e nacionais: "Pode ser um desperdício de tempo, dinheiro e capital humano ficar se reunindo em busca de um tratado internacional, sendo que poderíamos nos concentrar mais no que pode ser feito nos níveis local, estadual ou nacional."
Com 512 páginas, "Mercadores da Dúvida" inclui um novo posfácio escrito especialmente para a edição brasileira, mantendo-se como uma leitura essencial para compreender os desafios atuais da ciência e da política ambiental.