O Brasil enfrenta um paradoxo na área da saúde ocular: enquanto milhões de pessoas perdem a visão por causas completamente evitáveis, a tecnologia oferece soluções inovadoras que poderiam revolucionar o cuidado com os olhos. Esta é a análise do médico Claudio Lottenberg, presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde e do conselho do Hospital Israelita Albert Einstein.
O cenário atual da saúde ocular no Brasil
Segundo a Organização Mundial da Saúde, 2,2 bilhões de pessoas em todo o mundo possuem algum tipo de deficiência visual ou cegueira. O dado mais alarmante é que aproximadamente 1 bilhão desses casos poderiam ser prevenidos com intervenções adequadas.
As principais causas desses problemas permanecem as mesmas há décadas: erros de refração não corrigidos e catarata. Isso significa que a maioria das deficiências visuais não resulta de doenças raras ou complexas, mas sim da falta de acesso a soluções simples, seguras e de baixo custo.
No contexto brasileiro, o envelhecimento acelerado da população traz novos desafios. Doenças como degeneração macular, glaucoma e retinopatia diabética tornam-se cada vez mais comuns. A epidemia de diabetes amplia significativamente o número de pessoas sob risco de cegueira evitável.
Desigualdades regionais e acesso limitado
A integração da saúde ocular aos sistemas de saúde ainda é limitada no país. O acesso ao oftalmologista é especialmente difícil para usuários do SUS, principalmente em áreas rurais e remotas.
Um exemplo marcante dessa desigualdade aparece nas cirurgias de catarata: enquanto a região Sudeste realiza mais de 1.000 cirurgias por 100 mil habitantes, o Norte não chega à metade desse número. De modo geral, as filas para consultas e cirurgias são longas, os diagnósticos são tardios e a infraestrutura é insuficiente.
O fato de a oftalmologia ser considerada uma especialidade médica, vinculada à atenção secundária, dificulta sua inserção plena na rotina das Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Esta separação compromete a triagem precoce e o cuidado preventivo, especialmente em regiões com baixa cobertura especializada.
A revolução da inteligência artificial na oftalmologia
A inteligência artificial já se mostra uma aliada poderosa da oftalmologia. Algoritmos são capazes de detectar sinais precoces de retinopatia diabética em fotografias da retina com precisão comparável à de especialistas humanos.
Dispositivos autônomos, como o IDx-DR aprovado pela FDA, já realizam triagens fora de consultórios médicos, com análise instantânea e encaminhamento apenas dos casos positivos. Quando associadas a bases de dados bem estruturadas, essas tecnologias ajudam a identificar grupos de maior risco, otimizar filas e orientar políticas públicas mais eficazes.
Porém, a tecnologia sozinha não basta. É essencial que os algoritmos sejam testados em populações brasileiras, validados em câmeras e fluxos reais do SUS, e incorporados a protocolos clínicos claros.
Um plano nacional para transformar a saúde ocular
Claudio Lottenberg propõe a implementação de um Plano Nacional de Visão Digital que articule três frentes complementares:
- Garantir o básico: programas de correção visual em larga escala e acesso à cirurgia de catarata
- Usar a IA para triagem e organização das filas: algoritmos podem analisar dados clínicos, imagens retinianas e fatores sociais para classificar pacientes por prioridade
- Criar um painel público - "Visão Brasil": com indicadores de cobertura de triagem, tempo médio até consulta especializada, quantidade de óculos distribuídos e número de cirurgias realizadas
O plano também prevê a criação de um comitê nacional para validação de algoritmos, com auditoria contínua e protocolos clínicos integrados. Além disso, é necessário capacitar profissionais para o uso responsável da IA e planejar a formação de especialistas segundo as necessidades regionais.
Atualmente, cerca de 170 mil pessoas aguardam na fila do SUS por cirurgia de catarata. Como a doença é progressiva, quanto maior a espera, mais complicações podem surgir. Daí a importância de organizar as filas por prioridade clínica e social.
O Brasil tem a oportunidade de ser protagonista em um novo paradigma: o da saúde ocular baseada em dados. Corrigir a visão de quem hoje enxerga mal e preparar o sistema para as doenças do futuro são missões complementares. A tecnologia, quando bem aplicada, pode ser uma ferramenta poderosa para promover equidade em saúde.