Em uma entrevista emocionante concedida em outubro, a professora Fernanda Cristina Pires revelou como era viver sob cuidados paliativos no Brasil. A educadora da rede municipal de São Paulo faleceu esta semana, aos 49 anos, após uma longa trajetória de nove anos convivendo com o câncer de mama.
Fernanda não gostava da palavra "fim". Preferia falar em "encontros". Mãe de Luan "desde sempre" e esposa de Eduardo há 26 anos, ela encarava cada dia como "uma página nova do meu livro" - não um desfecho anunciado, mas um capítulo que insistia em escrever com presença, cuidado e esperança.
Uma trajetória marcada por reviravoltas
O primeiro diagnóstico de câncer de mama chegou em 2016, após uma mamografia com alteração. No mesmo período, Fernanda enfrentou um aborto espontâneo. Seguiram-se mastectomia total, oito sessões de quimioterapia, 25 de radioterapia e a retirada dos ovários.
Em 2019, surgiram as primeiras metástases no pulmão e nos ossos. Em 2023, mais duas: cerebral e hepática. "Quando achei que estava curada, veio a metástase. Passei a me sentir ameaçada o tempo todo. Mas isso não me impede de viver", afirmou na entrevista ao g1.
A descoberta dos cuidados paliativos
Como muitas pessoas, Fernanda acreditava que cuidados paliativos eram sinônimo de terminalidade. A mudança de perspectiva ocorreu durante a pandemia, quando conheceu a Casa Paliativa - comunidade virtual para pacientes com doenças graves - e o trabalho da ativista Ana Michelle Soares.
"Aprendi que paliativo não é desistir. É ter menos dor, menos sofrimento e mais dignidade", explicou. Mesmo sem uma equipe integrada - o ideal no modelo brasileiro - Fernanda montou sua própria rede com fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga e farmacêutica.
Ela destacou, porém, a falta de comunicação entre os profissionais: "Nos paliativos, a equipe precisa conversar. Eu fui criando minha rede, mas sinto falta dessa ligação entre eles".
O que são cuidados paliativos realmente
A dra. Bárbara Cury, geriatra e paliativista que atua no SUS e no setor privado, explica que o cuidado deveria começar já no diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida, acompanhando tratamentos como quimioterapia e radioterapia.
"Se o cuidado paliativo só entra quando o paciente está morrendo, está errado. O objetivo é atuar desde cedo, criar vínculo, alinhar expectativas e controlar sintomas", afirma a médica.
Nesse modelo, o paciente deixa de ser definido pela doença e volta a ser visto por sua biografia, afetos, medos, valores e rotinas. A abordagem envolve uma equipe multiprofissional capaz de tratar a "dor total": sofrimentos físicos, emocionais, sociais e existenciais.
Realidade brasileira: números e desafios
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil registrou 1,2 milhão de atendimentos paliativos no SUS em 2024. A Política Nacional de Cuidados Paliativos prevê que o país chegue a cerca de 1.300 equipes distribuídas pelo sistema público.
Na prática, porém, apenas 14 equipes concluíram todo o processo de habilitação até agora. Outras cinco foram aprovadas tecnicamente, mas aguardam a publicação da portaria final.
Juliana Dantas, diretora do Instituto Ana Michelle Soares, aponta que o gargalo vai além da falta de equipes: "As pessoas confundem paliativo com desistência. Essa leitura faz com que pacientes recusem cuidados que poderiam aliviar dor e sofrimento".
Vivendo com presença e propósito
Para Fernanda, estar em cuidados paliativos significava escutar seu corpo e aceitar que sentimentos se misturavam. "O medo está comigo todos os dias", confessou. Não o negava: acolhia sua presença e se permitia sentir quando a angústia aparecia.
Mesmo com a fadiga intensa da quimioterapia oral e crises de sensibilidade nos pés, a professora seguia participando de eventos oncológicos, rodas de conversa e encontros de pacientes. Tornou-se voluntária na Heliópolis Compassiva e no Instituto Ana Michelle Soares.
Fernanda morreu cercada pela família, sem sofrimento prolongado e podendo se despedir gradualmente - algo que defendia como parte essencial do cuidado paliativo. Seu legado permanece na coragem com que enfrentou cada página de seu livro, sempre escrevendo com presença e amor.