Morte no zoológico: tragédia expõe falhas na saúde mental no Brasil
Tragédia no zoológico revela falhas na saúde mental

A cena chocou o Brasil: Gerson Melo Machado, de 19 anos, invadiu o recinto dos leões no zoológico de João Pessoa, na Paraíba, e foi atacado mortalmente por uma leoa. O episódio, ocorrido em dezembro de 2025, foi rapidamente tratado como um caso isolado de "loucura". No entanto, a trajetória de Gerson até aquele momento fatal revela uma falha sistêmica e comum no país: a ausência de uma rede sólida de cuidado em saúde mental para pessoas em grave sofrimento psíquico.

Uma tragédia anunciada: a trajetória de desamparo

Gerson não era uma exceção. Com histórico de problemas psicológicos, possivelmente psicose e deficiência intelectual, ele tinha surtos frequentes e um suporte familiar frágil – sua mãe também era diagnosticada com esquizofrenia. Sua passagem pelo sistema prisional incluiu tentativas de medicação e contenção, mas, no dia de sua soltura, foi encaminhado para um serviço sem estrutura para crises graves. Uma conselheira tutelar que o acompanhava desde a infância definiu o caso como uma "tragédia anunciada".

Este cenário evidencia um hiato perigoso na política de saúde mental brasileira. A Reforma Psiquiátrica, um marco iniciado há décadas, buscou acabar com a lógica dos manicômios, defendendo a desinstitucionalização e o tratamento na comunidade. A criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foi fundamental, mas não suficiente para atender a todas as demandas.

O vácuo entre a teoria e a prática

Atualmente, pessoas com transtornos psiquiátricos graves que necessitam de cuidado contínuo ou internação em momentos de crise encontram poucas opções. A maioria esbarra nos CAPS, que, embora essenciais, são majoritariamente serviços ambulatoriais. Raros funcionam 24 horas e muitos não possuem leitos ou estrutura adequada para conter alguém em surto agudo sem um suporte familiar robusto.

Ilana Pinsky, psicóloga e pesquisadora que se formou na USP em 1989, testemunhou a era manicomial e agora analisa os desafios atuais. Ela compara levar uma pessoa em crise psicótica grave a um CAPS despreparado a "levar alguém infartando a um posto de saúde". Há esforço, mas não é o serviço adequado para a emergência.

Esta não é uma crítica à desinstitucionalização, mas um alerta sobre sua implementação incompleta. O poeta Ferreira Gullar, pai de dois filhos com esquizofrenia, já alertava há mais de quinze anos sobre a demagogia em torno do tema, defendendo que internações temporárias e adequadas são necessárias e que famílias pobres ficam desassistidas quando esse recurso é demonizado.

Um padrão global: da rua à prisão

O problema vai além das fronteiras do Brasil. Nos Estados Unidos, livros e reportagens mostram que o fechamento de hospitais psiquiátricos sem a criação de substitutos robustos levou a um cenário onde as prisões se tornaram os maiores provedores de saúde mental. Dados de uma meta-análise de 2024, com mais de 48 mil participantes de países como Canadá, Alemanha e EUA, são reveladores: 67% das pessoas em situação de rua têm transtornos mentais, taxa que sobe para 85% entre os homens.

Os números comprovam um padrão epidemiológico: na falta de serviços especializados, indivíduos com doenças mentais graves desaparecem nos interstícios da sociedade, migrando para a rua, o sistema prisional ou o completo desamparo.

O caminho necessário: modernização e evidência

O que o Brasil precisa, portanto, não é de uma regressão ao modelo manicomial, mas da modernização da sua rede de cuidado. É urgente a criação de:

  • Leitos psiquiátricos em número e qualidade adequados.
  • Unidades de crise 24 horas.
  • Serviços residenciais terapêuticos.
  • Equipes integradas e planejamento pós-alta efetivo.

É preciso abandonar debates puramente ideológicos e olhar para as evidências clínicas e epidemiológicas. Negar cuidado intensivo a quem precisa não é uma política de saúde mental progressista; é uma forma de abandono institucional.

A morte de Gerson Machado no zoológico de João Pessoa é um símbolo brutal desse fracasso. Enquanto o país não construir uma rede de serviços intermediários e de crise, veremos mais pessoas, em desespero, buscando contenção em lugares perigosos – seja uma jaula de leões, as ruas ou as celas de uma prisão. O que elas precisam, e merecem, é de um cuidado contínuo, digno e eficaz, capaz de acolher a complexidade do sofrimento mental no século XXI.