
O clima era de curiosidade genuína — e um certo alívio. Afinal, não é todo dia que se vê tanta gente reunida para falar abertamente sobre substâncias que, até pouco tempo atrás, eram tabu completo na medicina e na sociedade.
O Teatro Renaissance, em São Paulo, ficou literalmente lotado. Gente de todas as idades, profissões e histórias pessoais ocupando cada poltrona, cada espaço no chão. Todos com um interesse em comum: entender como essas substâncias psicodélicas — tão temidas no passado — estão se tornando ferramentas poderosas no tratamento de doenças mentais.
Não é sobre "dar uma viagem"
O psiquiatra Eduardo Schenberg, um dos principais nomes da área no Brasil, foi direto ao ponto: "Estamos falando de tratamento, não de recreação". Ele explicou, com uma paciência que só quem realmente domina o assunto tem, como a ayahuasca e a ketamina — esta última já aprovada para uso medicinal em vários países — podem "reorganizar" padrões cerebrais enraizados.
Pense num computador travado. Às vezes, reiniciar é a única solução. Algo parecido acontece com a mente humana quando certos traumas ou padrões negativos se instalam. Os psicodélicos, usados corretamente, permitem esse "reset".
Depressão, ansiedade, TEPT
Os casos mais promissores? Depressão resistente a tratamentos convencionais, ansiedade generalizada e Transtorno de Estresse Pós-Traumático. A pesquisadora Dra. Fernanda Palhano — que estuda os efeitos da ayahuasca na depressão — compartilhou dados impressionantes. Em alguns estudos preliminares, os resultados aparecem em horas, não em semanas como nos antidepressivos tradicionais.
Mas ela fez um alerta importante: "Isso não é para ser feito em casa, sem acompanhamento. O contexto — o que chamamos de 'set and setting' — é tudo".
O perigo da banalização
Com o crescente interesse, surge um risco claro: pessoas buscando "automedicação" sem o devido cuidado. Vários participantes relataram conhecer casos de gente que tentou reproduzir experiências terapêuticas por conta própria — com resultados desastrosos.
"A gente precisa falar sobre os riscos tanto quanto fala sobre os benefícios", destacou o antropólogo Henrique Fernandes, que estuda rituais com ayahuasca há mais de uma década. "Não é porque é 'natural' que é seguro em qualquer circunstância."
O que diz a lei?
Aqui mora outro desafio. Enquanto países como Canadá e Estados Unidos já regulamentaram o uso medicinal de algumas dessas substâncias, no Brasil a situação é mais complexa. A ketamina tem seu uso médico permitido, mas sob rígido controle. Já a ayahuasca tem um status peculiar — permitida em contextos religiosos, mas não como tratamento médico formal.
Os especialistas são unânimes: é preciso avançar na discussão regulatória, sempre baseada em evidências científicas sólidas.
Um movimento que veio para ficar
O que mais impressionou não foi o número de pessoas, mas a qualidade das discussões. Gente realmente interessada em entender os mecanismos, os protocolos, os cuidados necessários. Não era um grupo de "adeptos" cegos, mas de céticos curiosos e profissionais sérios buscando novas ferramentas para aliviar o sofrimento humano.
Talvez o maior sinal dessa mudança de mentalidade tenha sido ver tantos profissionais de saúde — médicos, psicólogos, terapeutas — reconhecendo que, às vezes, as respostas podem vir de lugares inesperados. Até mesmo de plantas e substâncias que nossas avós certamente reprovariam.
O futuro da terapia psicodélica no Brasil ainda está sendo escrito, mas uma coisa é certa: a conversa começou. E parece que veio para ficar.