Milhares de mulheres no Brasil enfrentam diariamente dores, inchaço e sensibilidade nas pernas e braços sem uma resposta clara para o que sentem. Muitas vezes, esses sintomas são sinais de uma condição crônica e subdiagnosticada: o lipedema. Caracterizado pelo acúmulo anormal e desproporcional de tecido adiposo, especialmente nos membros, o problema afeta cerca de 12,3% das brasileiras, segundo estimativas. A boa notícia é que a ciência nacional deu um passo decisivo para mudar esse cenário.
Um marco para a identificação precisa
Publicado em abril de 2024 no Journal of Biomedical Science and Engineering, um estudo pioneiro realizado no Brasil estabeleceu, pela primeira vez, critérios objetivos para o diagnóstico do lipedema por meio de exames de imagem. A pesquisa, intitulada "The Challenge of a Qualitative Ultrasonographic Classification in Lipedema", preenche uma lacuna histórica. Até então, os médicos dependiam quase exclusivamente da avaliação clínica dos sintomas, e os exames de imagem serviam basicamente para descartar outras condições, como trombose.
O trabalho é resultado da observação de 34 pacientes em rotina de atendimento radiológico, liderado pela médica radiologista Deise Vargas. Diante da recorrência de um padrão de sintomas – dor, hematomas espontâneos e aumento volumétrico desproporcional – e da falta de parâmetros de imagem para defini-lo, surgiu a motivação para a criação de um núcleo de pesquisa focado no tema, o LIPCOR.
A classificação que revela a evolução da doença
Após aproximadamente dois anos de investigação, os pesquisadores desenvolveram a Classificação LDHC (Lipedema Dermal & Hypodermal Classification). Este sistema inédito considera quatro estágios da doença, baseados no grau de alteração tecidual observado nas imagens de ultrassom. Um dos achados mais relevantes foi a descrição fisiopatológica dos chamados "nódulos do lipedema".
Por meio de biópsias guiadas por ultrassom, a equipe descobriu que essas estruturas correspondem a áreas de micro-hemorragia e hipóxia (falta de oxigenação). Isso revelou que a doença não é apenas inflamatória, mas envolve um processo de baixa oxigenação e redução do fluxo sanguíneo que prejudica a microcirculação e altera continuamente a estrutura do tecido adiposo.
Com base nesses padrões, foi criada uma metodologia padronizada de exame de ultrassonografia, que define critérios de varredura e documentação. Para operacionalizar a classificação, os pesquisadores também desenvolveram a calculadora LDHC, a primeira ferramenta de escore ultrassonográfico específica para lipedema, que sistematiza os achados e orienta a elaboração de laudos estruturados.
Reconhecimento e manejo multidisciplinar
O avanço científico chega em um momento crucial. O lipedema foi reconhecido como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019 e incluído na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) em 2022, sob o código EF02.2, com implementação oficial prevista para 2027. No Brasil, 2024 também viu a publicação do Consenso Brasileiro de Lipedema pela Metodologia Delphi.
O impacto do lipedema na vida das mulheres é significativo, causando dor persistente, limitação da mobilidade, sobrecarga musculoesquelética e prejuízo à qualidade de vida. Em estágios avançados, pode contribuir para ganho de peso secundário, agravando riscos cardiovasculares. Por isso, o manejo deve ser multidisciplinar, combinando fisioterapia, atividade física de baixo impacto, compressão, acompanhamento nutricional e suporte psicológico. Procedimentos cirúrgicos, como a lipoaspiração, são reservados para casos selecionados onde o tecido compromete severamente a funcionalidade.
Com a nova classificação tecidual, a metodologia padronizada e a ferramenta digital, a ciência brasileira se coloca na vanguarda do conhecimento sobre o lipedema. Esses avanços abrem caminho para a criação de centros de referência, estudos multicêntricos e políticas públicas baseadas em evidências. Para milhões de mulheres, significa a transição de uma condição invisibilizada para um problema de saúde identificável por parâmetros mensuráveis, com potencial para diagnósticos mais precisos e tratamentos verdadeiramente adequados.