O cenário dos relacionamentos no Brasil passou por uma transformação histórica que redefine completamente o conceito de casamento. Dados inéditos do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que, pela primeira vez desde 1872, as uniões informais superaram os casamentos com registro civil e religioso no país.
Os números da transformação
Os dados de 2025 mostram que 38,9% dos lares brasileiros são formados por uniões informais, enquanto os casamentos formais representam 37,9%. Há apenas duas décadas, essa realidade era completamente diferente - os "sem papel" não passavam de 28,6% das uniões.
Outro indicador importante dessa mudança comportamental é a proporção de casais com filhos, que pela primeira vez na história representa menos da metade dos lares brasileiros, ficando em apenas 42%. "Há uma transição de valores em curso que impacta em cheio o olhar sobre o casamento. Atualmente, as prioridades de vida são outras", analisa a demógrafa Iracy Pimenta.
As causas da reviravolta
Especialistas apontam que profundas transformações sociais prepararam o terreno para essa mudança. A disseminação da pílula anticoncepcional e a massiva entrada das mulheres no mercado de trabalho foram fatores determinantes, conferindo às mulheres liberdade de escolha sobre ter filhos e autonomia financeira.
O velho roteiro social - namorar, noivar, casar no altar e formar família numerosa - cedeu espaço para um conceito mais flexível de vida a dois. "As relações contemporâneas são claramente permeadas por mais racionalidade", afirma a socióloga Clara Maria Araújo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Casos reais da nova realidade
A psicóloga Juliana Fernandes, de 33 anos, e o professor de inglês Iuri Ramos, de 35, representam bem essa nova tendência. Após três anos morando juntos e dividindo as contas, resolveram celebrar a união com uma festa para amigos, mas sem registro formal. "A convivência deu certo e achamos que era hora de marcar uma nova fase", explica Juliana.
O casal também optou por não ter filhos, uma decisão consciente que reflete mudanças mais amplas na sociedade. "Acho que seríamos ótimos pais, mas sei que teríamos que abrir mão da individualidade que tanto valorizamos", complementa a psicóloga.
Outro exemplo vem dos historiadores Simone Lopa, 53 anos, e Agnaldo Cabral, 51, que moram juntos há duas décadas sem nunca terem cogitado o registro em cartório. "Não muda nada para nós", diz Simone, que integra uma configuração familiar cada vez mais comum: formada por herdeiros de relacionamentos anteriores.
Mudança de mentalidade global
Um estudo abrangente da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, indica que os casados ainda são vistos como "mais maduros, estáveis e responsáveis" em seus meios sociais. No entanto, o que mudou substancialmente foi a maneira de vivenciar a parceria.
Segundo os pesquisadores, saiu de cena o romantismo das "caras-metades que se completam" - uma metáfora de origem medieval - para dar lugar a uma visão mais realista e prática das relações. Os especialistas destacam que quanto menos idealização, maiores as chances de a união prosperar.
O antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio, observa que "no passado, quem ousava se separar quebrava uma tradição e ficava malvisto na sociedade. Já hoje, se não der certo, a pessoa pode ir morar sozinha ou retornar à casa dos pais, tudo com maior leveza".
Autonomia feminina como fator crucial
A conquista de espaço das mulheres no mercado de trabalho e a consequente independência financeira foram elementos fundamentais nessa transformação. Os dados do Censo mostram que 49% das mulheres já ganham mais que seus maridos, o dobro em relação ao início do século.
Essa mudança concreta na realidade econômica feminina permitiu que a liberdade para desfazer compromissos se tornasse uma possibilidade real, afastando-se do conceito de união sem volta, sacramentada para sempre.
Marta Souza, da Sociedade Brasileira de Psicologia, avalia que "antigamente, o morar junto era considerado pecado, mas hoje é um sinal de ganho de autonomia".
Os engenheiros Kayro Aguilar, 34 anos, e Stephany Gesser, 35, exemplificam essa nova racionalidade nas relações. Foram anos de reflexão até decidirem não ter filhos. "Uma criança é uma responsabilidade enorme, não cabe em nossa rotina", explica Kayro. Stephany complementa: "Sinto que não falta nada: somos uma família completa assim".
Para muitos jovens, a experiência de dividir uma casa funciona como uma espécie de teste para algo que, dependendo do andamento, pode se converter em casamento mais tarde. Apenas após consolidarem os alicerces da convivência é que o parceiro ou parceira passa a ser chamado de marido, mulher ou companheiro.
A longeva instituição do casamento está, de fato, de pernas para o ar. E, segundo especialistas, todos saem ganhando com essa revolução comportamental que prioriza escolhas genuínas em detrimento de convenções sociais ultrapassadas.