A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a conduzir pesquisas com a planta Cannabis. Este marco regulatório ocorre em um momento em que a ciência avança para desvendar as complexas relações entre o ser humano e essa substância, frequentemente envolta em estigmas.
O gene da curiosidade e a decisão de experimentar
Um estudo pioneiro publicado na renomada revista Neuropsychopharmacology oferece uma nova perspectiva, indo literalmente ao DNA dos usuários. A pesquisa "The genetics of Cannabis lifetime use" (CanLU), conduzida por cientistas da Universidade de Yale, investigou os fatores biológicos que aumentam a chance de uma pessoa experimentar cannabis ao longo da vida, independentemente de desenvolver dependência.
A equipe, liderada pelo professor Uri Bright, analisou dados genéticos de mais de 250 mil indivíduos de diversas ancestralidades. A descoberta central foi fascinante: a propensão a experimentar cannabis parece estar mais associada à genética ligada à curiosidade e à busca por novas experiências do que a uma predisposição direta ao vício.
O principal achado apontou uma forte ligação com um gene específico: o CADM2 (Cell Adhesion Molecule 2). Uma variante genética proeminente, a CADM2*rs7609594, foi identificada como crucial. Este gene é conhecido por neurocientistas como o "gene da curiosidade", pois está envolvido em comportamentos exploratórios e na chamada impulsividade positiva.
O CADM2 codifica uma proteína essencial para a conexão entre neurônios. Alterações nessa região genética estão associadas a uma maior sensibilidade à recompensa e uma disposição aumentada para explorar novidades. O mesmo mecanismo que pode levar alguém a experimentar uma nova comida, viajar ou aprender algo novo também parece modular a probabilidade de experimentar substâncias psicoativas, como a cannabis.
Caminhos genéticos distintos: curiosidade versus compulsão
Um dos aspectos mais importantes do estudo foi a comparação entre a genética do uso ao longo da vida (CanLU) e a genética do Transtorno por Uso de Cannabis (CanUD), que caracteriza a dependência.
Embora exista uma correlação genética moderada entre os dois comportamentos, os pesquisadores descobriram que os locais no genoma (loci) associados ao uso ocasional são significativamente diferentes daqueles ligados ao uso compulsivo. Isso reforça biologicamente a ideia de que "curiosidade" e "compulsão" seguem caminhos distintos no corpo.
Enquanto o CanUD (dependência) se correlaciona fortemente com transtornos psiquiátricos, distúrbios do sono e problemas cardiovasculares, o CanLU (uso ao longo da vida) mostrou associações positivas com traços de personalidade exploratórios e, surpreendentemente, com maior escolaridade. Este dado contrasta com o tabagismo, que geralmente apresenta correlação negativa com a educação.
O estudo também confirmou que, apesar de comportamentos semelhantes, existem diferenças genéticas claras entre o uso vitalício de cannabis e o de tabaco, indicando que não são fenômenos geneticamente idênticos.
Implicações para a medicina e a sociedade
As descobertas têm profundas implicações. Primeiro, evidenciam que a resposta à cannabis é influenciada por fatores genéticos individuais, tanto no comportamento quanto na forma como o corpo metaboliza seus compostos, como CBD e THC. Genes como CADM2, CYP2C19 e FAAH podem explicar por que alguns pacientes têm excelentes resultados terapêuticos e outros não.
Segundo, o estudo oferece uma base biológica para distinguir "uso" de "abuso", o que pode ajudar a reduzir o estigma social, especialmente em contextos medicinais. Experimentar cannabis não significa, por si só, uma predisposição genética à dependência. Desenvolver um transtorno por uso é um processo com outras bases biológicas.
Para as políticas públicas, os insights são valiosos. Se a genética por trás do uso ocasional é diferente daquela por trás da dependência, as estratégias de prevenção, regulação e educação podem e devem ser mais refinadas, distinguindo entre a vulnerabilidade à dependência e a curiosidade inerente ao ser humano.
Compreender a cannabis através da lente da genética não serve para justificar ou promover seu uso, mas para enxergar o tema com nuance, ciência e empatia. É um passo crucial para informar debates públicos e construir políticas de saúde mais eficazes e menos pautadas por preconceitos.