A crise aberta no bolsonarismo ganhou um novo capítulo significativo após a ofensiva pública de Michelle Bolsonaro contra a articulação do Partido Liberal (PL) no Ceará, que previa apoio a Ciro Gomes. O episódio, longe de ser um mero desentendimento familiar, é interpretado por analistas como um sinal claro de que a ex-primeira-dama decidiu ocupar ativamente o espaço de liderança deixado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Um movimento deliberado no vácuo de poder
Para o cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, a atitude de Michelle foi "deliberada e política". Em entrevista ao programa Ponto de Vista, da VEJA, ele destacou que a ex-primeira-dama agiu com conhecimento de que a estratégia partidária tinha o aval do próprio Bolsonaro. Ao confrontá-la publicamente, ela consolidou um papel que vem construindo há meses: o de uma figura pública com voz própria dentro do campo bolsonarista.
A reação imediata e crítica dos filhos do ex-presidente — Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro — apenas tornou mais visível a disputa interna. Ao defenderem a linha chancelada pelo pai e criticarem a madrasta, eles escancararam a existência de duas autoridades competindo por legitimidade dentro da família: a política, ainda associada a Bolsonaro, e a simbólica, que Michelle agora tenta reivindicar com força.
A estratégia de comunicação e a base ideológica
Noronha avalia que a nota divulgada por Michelle — extensa, emocional e dirigida diretamente aos seguidores — foi um movimento calculado. Ao afirmar que "respeita os enteados, mas pensa diferente" e ao publicar vídeos que relembram ataques de Ciro Gomes a Bolsonaro, ela buscou dois objetivos principais:
- Blindar-se perante a base ideológica mais radical do bolsonarismo.
- Reforçar um discurso de fidelidade absoluta ao ex-presidente e ao projeto político que ele representa.
"Michelle percebeu que, com Bolsonaro condenado e limitado pela tornozeleira, existe uma corrida silenciosa por quem fala em nome dele. E ela não pretende ficar à margem", explicou o analista. O episódio do Ceará, portanto, é a materialização pública dessa percepção.
Popularidade e medo da diluição de influência
O conflito também revela, segundo a análise, o temor dos filhos de que Michelle assuma um protagonismo que dilua a influência individual de cada um dentro do campo político da direita. As reações duras e alinhadas de Flávio, Carlos e Eduardo foram uma defesa da hierarquia original do grupo, com Bolsonaro no comando, os filhos na linha auxiliar e Michelle em um papel mais institucional e afetivo.
No entanto, o cenário mudou. "Ela tem mais popularidade que todos os três juntos, mais aceitação entre mulheres evangélicas e maior capacidade de mobilização simbólica", afirmou Cristiano Noronha. "Ignorar isso seria um erro." Essa nova realidade de força e capilaridade de Michelle é um trunfo que ela agora parece disposta a usar.
O primeiro embate de uma transição forçada
Para o cientista político, o conflito aberto no Ceará é apenas o primeiro de vários embates que devem marcar os próximos meses. Sem Jair Bolsonaro plenamente ativo na política, o bolsonarismo vive uma transição forçada, e o resultado desse processo definirá os rumos da direita brasileira até as eleições de 2026.
"Michelle está deixando claro que não será coadjuvante", conclui Noronha. "E o clã Bolsonaro, agora fragmentado, terá de decidir se a aceita como uma líder de fato ou se transformará sua ascensão em mais um capítulo de guerra interna." A disputa, iniciada com uma nota sobre uma articulação partidária no Nordeste, evidenciou que a batalha pelo controle da narrativa e do futuro do bolsonarismo já começou, e Michelle Bolsonaro é uma protagonista central nela.