Um documento histórico guardado a milhares de quilômetros do Brasil promete reescrever capítulos fundamentais da resistência negra durante o período colonial. Trata-se do mapa original manuscrito Brasilia Qua Parte Paret Belgis, do naturalista George Marggraf, encontrado no acervo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
O mapa esquecido que guiará escavações em 2026
A descoberta do material, ocorrida em 2021 pelo cartógrafo histórico Levy Pereira, é agora a base para uma ambiciosa pesquisa arqueológica. Um grupo multidisciplinar das universidades federais de Alagoas (UFAL) e Rural de Pernambuco (UFRPE), financiado pela Fundação Cultural Palmares e com autorização do Iphan, realizará escavações em janeiro de 2026.
O objetivo é localizar vestígios de quilombos anteriores ao famoso Quilombo dos Palmares, fundado pela princesa congolesa Aqualtune no final do século XVI. As escavações estão previstas para os atuais municípios de Correntes e Lagoa do Ouro, em Pernambuco, e na região de Chã Preta e União dos Palmares, em Alagoas.
Por que este mapa é uma peça-chave?
Segundo o arqueólogo Onésimo Santos, coordenador da pesquisa, relatos históricos como os do comandante holandês Johan Blaer, de 1645, já citavam outros quilombos na região. No entanto, a descrição de rios com nomes em desuso e distâncias imprecisas em milhas tornava a localização impossível.
O mapa de Marggraf, transposto para uma base cartográfica atual e cruzado com imagens de satélite de alta resolução, permitiu superar esse obstáculo. "Visualizamos algumas geometrias do terreno, como retângulos que pareciam ser escavados, e assinalamos nos mapas como áreas sensíveis", explica Santos.
A importância do documento em Harvard reside em sua originalidade. As versões conhecidas ao longo dos séculos eram reproduções com erros acumulados de impressão. O material da biblioteca norte-americana é o original, feito à mão pelo próprio Marggraf no século XVII.
Reescrevendo a história da liberdade
Para os pesquisadores, encontrar evidências materiais nesses locais vai além da arqueologia. É uma oportunidade de contar uma nova história. "Não sabemos muito sobre a cultura material afro-brasileira do seu cotidiano em um espaço de liberdade", reflete Flávio Moraes, arqueólogo do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da UFAL.
Moraes destaca que a narrativa sobre a população negra nesse período quase sempre remete à escravidão, às senzalas e ao sofrimento. As escavações buscarão vestígios do cotidiano livre: como cultivavam a terra, seus rituais, técnicas de defesa e até enterramentos.
Guilherme Bruno, da Fundação Palmares, espera que a pesquisa demonstre que a resistência era mais complexa e organizada do que se imaginava. "É uma forma de demonstrar que existia uma resistência organizada na acumulação desses territórios, muitos inexplorados. Eles foram também grandes exploradores do interior do Brasil", afirma.
Os próximos passos da investigação
Com financiamento inicial para 18 meses, a primeira etapa envolverá prospecção de superfície e sondagens em Pernambuco. Os arqueólogos buscam dois tipos principais de vestígios:
- Móveis: Objetos usados em rituais e festas.
- Estruturas de defesa: Como as cercas de madeira e fossos descritos em documentos holandeses e portugueses, que podem corresponder aos retângulos vistos nas imagens de satélite.
A equipe também espera encontrar estruturas de casas, forjas para produção de ferramentas e pontas de lança, cerâmicas e áreas de sepultamento. O projeto tem uma preocupação ética clara. "Se encontramos áreas de sepultamento, não pretendemos violar esses espaços sagrados, a não ser que tenhamos autorização", ressalta Flávio Moraes.
Os resultados poderão levar a novas fases de escavação no chamado Grande Palmares e a produção de material audiovisual educativo. A pesquisa, que envolve historiadores, geógrafos e antropólogos, representa um esforço para iluminar uma história de liberdade que, por séculos, ficou esquecida em uma prateleira de Harvard.