Quando o sol se punha no Recife do século 19, o Rio Capibaribe se transformava em uma rota secreta para a liberdade. Sob a cobertura da noite, embarcações carregadas de pessoas escravizadas deslizavam silenciosamente pelas águas, escondidas sob feixes de palha. Essa operação arriscada fazia parte de uma rede abolicionista que ajudou aproximadamente três mil escravizados a fugirem entre 1884 e 1888.
O Clube do Cupim e sua estratégia secreta
No centro dessa organização clandestina estava o Clube do Cupim, uma associação ilegal fundada na capital pernambucana. Embora a maioria dos membros fossem homens brancos influentes, havia uma presença fundamental que a história oficial tentou apagar: mulheres negras libertas como Gertrudes Maria de Jesus.
Pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) mapearam a trajetória de Gertrudes, revelando que ela integrava o primeiro escalão de auxiliares do Clube do Cupim. "Na hierarquia, ela estava acima de mulheres brancas de elite", explica a pesquisadora Adriana Santana.
A casa que virou quilombo urbano
A residência de Gertrudes, localizada em área central do Recife, funcionava como uma 'panela' - termo usado para designar esconderijos que abrigavam escravizados até o momento do embarque final. "Era líder de um quilombo urbano", destaca Santana.
Os riscos que Gertrudes corria eram imensos. Por ser negra e não dispor dos mesmos recursos materiais que as mulheres brancas do movimento, ela enfrentava perigos ainda maiores ao abrigar fugitivos em sua própria casa.
As fugas pelo Capibaribe eram operações complexas que envolviam canoeiros - geralmente homens negros libertos - que precisavam conhecer cada curva do traçado sinuoso do rio, sempre vigilantes contra postos policiais secretos.
Estratégias criativas de fuga
Os métodos de escape eram diversos e engenhosos. Os pesquisadores documentaram casos onde escravizados:
- Desapareciam no tumulto dos dias de carnaval
- Embebedavam seus senhores para facilitar a fuga
- Usavam disfarces elaborados, como mucamas que saíam vestidas como sinhás
Um relato extraordinário do jornal A Província, de 21 de maio de 1918, descreve como cocheiros de uma casa funerária simularam um cortejo fúnebre, transportando escravizados dentro de caixões e disfarçados com trajes de luto até as embarcações.
O reconhecimento tardio e o esquecimento seletivo
Após a Abolição em 1888, os membros do Clube do Cupim organizaram uma passeata de despedida pelas ruas do Recife. Documentos da época registram que os abolicionistas foram especificamente à casa "da mulata Gertrudes" para agradecer pelos serviços prestados à causa.
Esse reconhecimento, porém, não se perpetuou na memória histórica. Enquanto casais brancos abolicionistas como José Mariano e Olegária da Cunha receberam homenagens públicas - incluindo o Cais José Mariano -, Gertrudes e outras mulheres negras caíram no esquecimento seletivo.
Os pesquisadores da UFPE não encontraram informações sobre o que aconteceu com Gertrudes de Jesus após a abolição. Para Santana, "mulheres negras do passado, como Gertrudes, tentavam burlar os silenciamentos com ações que só conseguimos enxergar hoje".
Além de Gertrudes, os estudiosos identificaram outras mulheres atuantes no movimento, como a africana Gertrudes Rosário, que em 1890 foi presa acusada de raptar uma criança - quando na verdade tentava resgatar sua própria filha, deixada com os antigos senhores quando foi escravizada e enviada ao Pará.
Essas histórias revelam não apenas a luta pela liberdade, mas também a resistência contra o apagamento histórico. Como concluem os pesquisadores, essas mulheres "jogaram uma mensagem ao futuro", deixando rastros em processos judiciais, ações por liberdade e menções tímidas em jornais que hoje nos permitem resgatar suas trajetórias.