O fim dos tempos é uma ideia que permanece viva, moldando a forma como o Ocidente encara o presente e projeta o futuro. Em seu novo livro, Chronos – O Ocidente confrontado ao Tempo, o historiador francês François Hartog investiga como o cristianismo criou um arcabouço temporal que, por dois milênios, determinou a vida em sociedade. Publicado pela editora Autêntica, a obra chega ao Brasil em um momento em que a crise ambiental impõe um novo tipo de juízo final.
Do Chronos grego ao presentismo digital
Hartog, diretor emérito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, examina o que chama de regime de historicidade cristão. Segundo ele, os cristãos reinterpretaram noções da Grécia Antiga, como Chronos (o tempo vasto), Kairós (o momento oportuno) e Krisis (o julgamento), e as fundiram com as crenças do Novo Testamento.
O resultado foi um presentismo apocalíptico, uma visão de mundo centrada em um presente sempre à espera de um fim iminente. Essa estrutura, argumenta o autor, foi tão poderosa que sobreviveu à secularização. Movimentos como a Revolução Francesa se apropriaram de sua lógica, e hoje ela se reflete em nosso presentismo digital, marcado pela urgência das redes sociais e dos algoritmos.
A crise climática como novo apocalipse
O estudo minucioso de Hartog culmina na análise do maior desafio contemporâneo: a emergência climática. Para o historiador, o aquecimento global se apresenta como um novo apocalipse, um julgamento das ações da humanidade contra o planeta. Em entrevista, ele reflete sobre como essa leitura pode impactar a sociedade.
A ameaça pode levar a uma mobilização em favor do planeta, um uso que Hartog, seguindo o pensamento de Bruno Latour, classifica como apotropaico – um ritual para afastar o mal. No entanto, o autor alerta para outros caminhos possíveis. Na direção oposta, a ameaça pode levar a uma forma de resignação, onde as pessoas pensam: 'já é tarde demais, vamos aproveitar o tempo que resta'.
Há ainda uma terceira via, a da negação pura e simples, exemplificada por figuras como Donald Trump, para quem a mudança climática é uma farsa. Essa postura, segundo Hartog, está alinhada com o presentismo e é alimentada pelo medo.
Desigualdades e a experiência do tempo
Hartog também destaca que a experiência do tempo não é uniforme. As desigualdades sociais e econômicas influenciam profundamente como as pessoas vivenciam o presente e se projetam no futuro. Enquanto os 'vencedores' do presentismo são ágeis e conectados, os 'perdedores' – desempregados, migrantes, muitos jovens – vivem um dia a dia sem escolha, incapazes de planejar o amanhã.
Os riscos do presentismo digital, reforçado pelas redes sociais, são o sufocamento e a dominação pela emoção e pela raiva. O que parecia coroar a liberação do indivíduo moderno pode muito bem acabar como uma nova forma de subjugação, adverte o historiador.
A obra Chronos, com 312 páginas e tradução de Laurent de Saes, serve assim como um farol para entender como as concepções cristãs de tempo, embora transformadas, ainda nos orientam diante do colapso ambiental. O julgamento, ao menos o ecológico, já começou, e o Ocidente é confrontado mais uma vez com o senhor Tempo.