Há 22 anos, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) implementava um sistema pioneiro no país: as cotas raciais e sociais em seu vestibular. Mais de duas décadas depois, a política de ação afirmativa é celebrada por ter alterado radicalmente o destino de milhares de jovens. Para marcar a data e discutir o futuro do programa, a instituição reuniu, na última semana de novembro, egressos cotistas em um encontro na reitoria.
Trajetórias transformadas pela política de cotas
Henrique Silveira, atual subsecretário de Tecnologias Sociais da prefeitura do Rio, é um dos exemplos do impacto da medida. Nascido em Imbariê, na Baixada Fluminense, ele ingressou no curso de Geografia em 2006. "Eu tenho muita clareza de que a cota transforma", afirmou. "Ela me permitiu deixar de ser um menino atrás de uma carroça, um burro sem rabo, para hoje estar à frente da gestão pública", completou, referindo-se ao trabalho que fazia com o pai, entregando material de construção.
Para Henrique, a política foi determinante para sua mobilidade social. "Eu sou o tipo de transformação que essa política é capaz de dar", destacou, enfatizando a importância do acesso à universidade para jovens de origem humilde.
A dentista Maiara Roque, que passou no vestibular em 2013, também compartilhou sua experiência. Ela lembrou os desafios iniciais e o sentimento de superação. "Depois que você entra, você adquire um sentimento de pertencimento, que você merece esse lugar", disse. Formada em um curso de dedicação integral, Maiara contou com o apoio da mãe, cuidadora de idosos, e hoje tem um consultório na Penha, bairro onde cresceu. "Estou devolvendo para minha comunidade essa oportunidade", afirmou, orgulhosa de atender uma população que se identifica com sua trajetória.
Impacto social e próximos desafios
As cotas da Uerj não apenas abriram portas, mas também ajudaram a reduzir desigualdades históricas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 mostram que, embora as taxas de pretos (11,7%) e pardos (12,3%) com ensino superior tenham crescido, elas ainda são menos da metade da observada entre pessoas brancas (25,8%). A política de ação afirmativa é um dos mecanismos para acelerar essa redução.
No modelo da Uerj, diferente das federais, o critério racial é cruzado com o socioeconômico. Para concorrer às vagas destinadas a negros, o candidato deve comprovar uma renda familiar bruta per capita de até R$ 2.277. Esse modelo já permitiu o ingresso de 32 mil estudantes na instituição.
No entanto, esse recorte de renda é apontado como um novo desafio, especialmente para a pós-graduação. David Gomes, ex-cotista do curso de História (ingresso em 2011) e ativista de direitos humanos, defende a revisão do critério. "A grande questão hoje, na pós-graduação, é o recorte de renda. Temos que enfrentar essa discussão", explicou, argumentando que o valor atual é considerado baixo para quem já se formou e busca especialização.
O futuro das cotas e a construção de uma rede
A política de ações afirmativas da Uerj foi consolidada pela Lei 8.121, de 2018, que destina 20% das vagas para cotas raciais (incluindo indígenas e quilombolas) e outros 20% para alunos de escola pública. A legislação atual vencerá em 2028, quando passará por sua segunda revisão.
Como primeiro passo para essa discussão, os egressos defendem a coleta e divulgação de dados robustos sobre o impacto da política. A criação de uma rede de ex-alunos, iniciada com o encontro na reitoria, é vista como fundamental para mapear trajetórias profissionais e embasar futuras decisões.
Henrique Silveira, o geógrafo, ressaltou a importância dos dados para políticas públicas eficazes. Ele também pediu a redução da burocracia para comprovação do perfil socioeconômico e mais apoio aos pré-vestibulares populares, espaços que, para ele, foram essenciais em sua conscientização racial. "No Brasil, você não nasce negro, você torna-se negro. Fiz vestibular em 2005, era um daqueles 'não quero cota', mas ali eu tomei consciência que era meu direito", finalizou.
A história das cotas na Uerj é, portanto, uma história de transformação individual e coletiva, que agora se prepara para um novo capítulo, buscando aprimorar um instrumento que se provou vital para a democratização do ensino superior no Rio de Janeiro.