Estrelas Michelin no delivery: alta gastronomia se adapta e mercado cresce 30%
Restaurantes estrelados aderem ao delivery de forma permanente

A simples ideia de um restaurante com estrelas Michelin oferecer delivery, há alguns anos, era recebida com desdém por chefs e apreciadores da boa mesa. A experiência gastronômica era considerada indissociável do ambiente, do serviço impecável e do ritual de sair para jantar. No entanto, a pandemia de 2020 abalou esses pilares e forçou uma transformação radical no setor.

Uma Revolução Forçada pela Quarentena

Com os clientes em quarentena, estabelecimentos renomados, que antes tinham filas de espera, se viram obrigados a transpor uma barreira impensável: entrar no mercado de entregas. O que parecia uma medida temporária para sobreviver ao isolamento revelou-se uma tendência permanente, dando origem a um nicho promissor que não para de crescer e que apresenta novos desafios para restaurantes de prestígio em metrópoles ao redor do mundo, incluindo as brasileiras.

Dados recentes mostram a dimensão desse avanço. Nos Estados Unidos, mercado onde a prática já está consolidada, 30% dos clientes preferem degustar o menu dos restaurantes sem sair de casa. No Brasil, a adesão é massiva: 71% dos estabelecimentos, desde lanchonetes até os mais aclamados, já oferecem delivery, e quase metade da população pede comida por aplicativo toda semana.

Desafios e Adaptações da Alta Cozinha para Viagem

A migração de receitas refinadas para o delivery exigiu adaptações profundas. Transportar pratos de montagem complexa não é o mesmo que levar um hambúrguer com fritas. A preocupação com a temperatura, a apresentação e a integridade do alimento se tornou central.

Em cidades como Nova York, já é possível pedir em casa criações de casas laureadas com estrelas Michelin. O renomado chef francês Jean Georges, por exemplo, entrega iguarias como lagosta assada com molho agridoce de pimenta negra. Em Londres, o premiado Benares leva sua cozinha indiana sofisticada para além do curry. Até em Paris, bastião da tradição, charcuterias de elite como a Arnaud Nicolas criaram menus especiais para delivery.

No Brasil, grandes nomes também se adaptaram. O italiano Gero, do grupo Fasano, com operações no Rio e em São Paulo, desenvolveu pratos elaborados exclusivamente para entrega, pensados para resistir às sacudidas do trajeto de moto. No Grado, também no Rio, um espaço foi reservado na cozinha para a montagem das "quentinhas" gourmet, e um imóvel ao lado foi alugado para os entregadores aguardarem as encomendas.

Duas Experiências que se Complementam

Contrariando o temor inicial, o delivery não esvaziou os salões. Tornou-se, na verdade, uma via complementar de negócios. Fernando Blower, diretor-executivo da Associação Nacional de Restaurantes, explica: "Os bons restaurantes perceberam que o delivery leva o cliente para o salão e vice-versa. Uma pessoa pode querer sair para jantar um dia, mas no outro preferir a entrega em casa".

Este comportamento híbrido é exemplificado por consumidores como a estudante de direito Bárbara Santos, de 20 anos, que se tornou assídua do delivery na pandemia, mas ainda valoriza sair. "Gosto de sair, mas às vezes é mais prático ficar", pondera. Por outro lado, há quem continue fiel ao ritual presencial, como a aposentada Raquel Brandão, de 75 anos, que aprecia a socialização e a atmosfera únicas do restaurante.

Segundo projeções do setor, até 2030 as entregas responderão por metade do volume de comida produzida globalmente em restaurantes, uma tendência puxada principalmente pelo público jovem. Apesar do crescimento inexorável do delivery, os restaurantes mantêm seu papel social fundamental. Como lembra a historiadora americana Rebecca Spang, eles são um dos poucos ambientes onde ainda nos sentamos com pessoas de visões de mundo diferentes. E isso, por si só, já vale a visita.