Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos e fundador da Academia Brasileira de Letras, não era branco - embora tenha sido retratado dessa forma em inúmeros livros escolares. Da mesma forma, Chiquinha Gonzaga, um dos pilares fundamentais da música brasileira, foi interpretada por atrizes brancas em produções televisivas, apesar de sua ascendência africana.
O fenômeno do embranquecimento histórico
De acordo com David Santos, filósofo, teólogo e fundador da Educafro Brasil, toda pessoa afrodescendente que se tornou importante na história humana acabou sendo embranquecida ou neutralizada. A pesquisadora Roberta Basilio, professora da ESPM, complementa que a omissão da origem negra de personalidades históricas está relacionada a uma necessidade de negar que pessoas negras possam ser geniais.
O racismo precisa embranquecer as personalidades porque assim fica mais fácil reconhecer a genialidade, o talento e a potência dessas pessoas, explica Basilio.
Machado de Assis: um caso emblemático
Quando Machado de Assis faleceu em 1908, sua certidão de óbito registrava sua cor como branca. No entanto, sabe-se que ele era filho de um pai pardo alforriado e uma mãe branca, sendo considerado mulato durante sua vida. Em 1871, o poeta português Gonçalves Crespo escreveu ao brasileiro mencionando sua simpatia por ele quando soube que eram ambos pessoas de cor.
O obituário publicado no Jornal do Commercio, escrito por seu amigo José Veríssimo, definia Assis como mulato. Alfredo Pujol, em conferências entre 1915 e 1917, também destacou que o escritor era filho de gente de cor e sofreu preconceitos raciais. A biografia de Lúcia Miguel Pereira, de 1936, referia-se a ele como mulatinho, mestiço e pardinho.
Em 2021, a Universidade Zumbi dos Palmares lançou uma campanha pressionando editoras a pararem de imprimir livros que retratam Machado de Assis como branco.
Outras personalidades com origens negras esquecidas
Lima Barreto, escritor filho de pais negros e neto de escravizados, demonstrava consciência racial em sua obra. Seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha é considerado autobiográfico por retratar preconceitos raciais e sociais. Em seu Diário Íntimo, aos 23 anos, ele expressou desejo de escrever um Germinal negro.
Chiquinha Gonzaga, filha de uma negra liberta com um militar branco, envolveu-se intensamente na luta abolicionista. Ela vendia partituras para comprar cartas de alforria e libertar escravizados. Apesar disso, em 1999, foi interpretada por duas atrizes brancas numa minissérie da Globo.
Nilo Peçanha foi o único presidente negro do Brasil, governando entre 1909 e 1910. Oposicionistas frequentemente o atacavam enfatizando seus traços mulatos em charges políticas. Abdias do Nascimento, em seu discurso de posse como senador, lamentou a omissão da origem negra de Peçanha ao longo da história.
Figuras internacionais também passaram pelo mesmo processo
O fenômeno não se limita ao Brasil. Alexandre Dumas, autor de O Conde de Monte Cristo e Os Três Mosqueteiros, era neto de uma ex-escravizada e tem tido sua negritude resgatada recentemente. Da mesma forma, Alexandre Pushkin, poeta e escritor russo, tinha um bisavô materno africano que foi sequestrado de sua terra natal.
Para David Santos, resgatar essas identidades é uma missão necessária. Todos eles são vítimas de uma sociedade que nunca trabalhou o letramento racial. Eles não escolheram negar sua identidade afro - a sociedade de seu tempo impôs essa postura, afirma o frade franciscano.
O historiador Philippe Arthur dos Reis faz uma ressalva sobre o uso do termo embranquecimento, argumentando que as concepções de negritude e branquitude se diferenciam com o passar do tempo. A linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio acrescenta que negro é uma categoria surgida com os movimentos antiescravagistas.
Para Roberta Basilio, o resgate da negritude de personalidades consagradas tem um efeito importante porque parte de figuras já reconhecidas como talentosas para lembrar que foram pessoas negras que realizaram essas conquistas. Mostramos que somos potência. E eu digo nós porque sou uma mulher negra. E isso tem um peso muito grande para nós, como representatividade, finaliza.