Porto Alegre recuperou um importante patrimônio histórico e cultural com a reabertura da Biblioteca do Negro, que agora funciona no bairro Cidade Baixa. O espaço, que estava fechado há sete anos, foi reinaugurado no sábado (15) com um acervo valioso sobre a história da população negra no Rio Grande do Sul.
Acervo histórico da escravidão gaúcha
A biblioteca reúne aproximadamente 5 mil páginas de registros históricos sobre a escravidão no estado entre 1763 e 1888. Entre os documentos mais significativos estão oito livros que detalham os registros de compra e venda de pessoas negras no RS durante o período escravocrata.
Além desses registros, o local abriga mais de 1.300 obras, incluindo livros raros e documentos históricos que ajudam a contar a trajetória da comunidade negra no estado. O espaço está instalado na Associação Odabá, que também oferece ambiente de co-working para afro-empreendedores.
Importância para o resgate histórico
Clélia Paim, de 69 anos, mantenedora do espaço, explica que os registros do comércio de escravizados são fundamentais para o resgate da história das pessoas negras no Rio Grande do Sul. "Ainda há muitas pessoas que buscam requerer terras, indenizações e outros direitos, e isso é muito demorado", afirma Clélia.
A dificuldade, segundo ela, está no fato de que "os escravizados entravam no Brasil com nomes diferentes de sua origem, eram registrados com o sobrenome de seu comprador". Mesmo descrevendo apenas características que ela classifica como "técnicas" ou "comerciais" - como altura, idade, características físicas e poucas informações de parentesco - os documentos podem auxiliar na busca por direitos.
Pesquisa abrangente pelo estado
A pesquisa que resultou nos livros foi realizada por iniciativa do Ministério Público do RS (MPRS), que contratou historiadores de todo o estado para buscar registros em todos os tabelionatos do RS. O trabalho revelou documentos que mostram a crueldade do sistema escravocrata.
"É um peso muito grande, porque é a história real. Ali, nos conscientizamos de que éramos realmente mercadoria. Além do nosso primeiro nome, tem só as nossas características 'técnicas': como eram nossos dentes, nossos braços, nossos músculos, o valor da venda, o valor da compra e pronto", reflete Clélia sobre a experiência de analisar os documentos.
Recuperação de documentos históricos
O Ministério Público teve papel crucial na recuperação de parte desse acervo. Em abril deste ano, dois irmãos que atuam no comércio de livros raros foram investigados após publicarem nas redes sociais documentos históricos sobre o regime escravocrata na antiga província de Rio Grande.
Os irmãos alegaram que os documentos foram resgatados de um incêndio em um cartório. Diante da possibilidade de venda desse material de origem pública, o MP obteve mandados de busca e apreensão. A investigação revelou que um dos irmãos oferecia os documentos por R$ 10 mil.
Entre os registros recuperados estão documentos da Junta de Classificação e de Emancipação de Escravos, matrícula de pessoas escravizadas, registros de cemitério e da cadeia de Rio Grande, com informações sobre entradas e saídas de pessoas escravizadas que fugiram.
O historiador Gabriel Gaziero destaque que "esses documentos, que registram o sofrimento da população negra e o funcionamento deste sistema tão violento e que trouxe tantos traumas, ajudam na reconstituição dessa história, dessa ferida ainda não cicatrizada, e como lidar com essa questão atualmente".
Funcionamento e homenagem
A Biblioteca do Negro funciona diariamente na Casa Odabá, localizada na Rua João Alfredo, 782, no bairro Cidade Baixa. A consulta aos livros é livre, mas exige agendamento prévio.
O espaço recebe o nome de Yvanilda de Oliveira Belegante, professora de geografia que esteve à frente da biblioteca por mais de 30 anos, mas precisou se afastar por questões de saúde. A reabertura representa não apenas a recuperação de um espaço físico, mas a preservação da memória e da história da população negra gaúcha.