No cenário urbano de Sorocaba, entre o tráfego intenso e as construções modernas, surge um refúgio histórico que guarda memórias de fé e ancestralidade. A Capela Senhor do Bonfim, localizada em uma das vias mais movimentadas da cidade, representa muito mais que um espaço religioso - é um monumento à cultura negra e à trajetória de seu fundador, João de Camargo.
Do sonho infantil à realização cinematográfica
A história que ganharia as telas do cinema brasileiro há duas décadas começou com a curiosidade de um menino que visitava a capela ao lado do avô. Paulo Betti, que se tornaria ator e diretor, transformou essas memórias de infância no filme Cafundó, lançado em 2005.
"Eu ia visitar meu avô na roça, nas plantações de arroz, de feijão, e depois meu avô me levava na igreja do João de Camargo", recorda Betti. "Era curioso entrar no ambiente da igreja, com todos os santos, caboclos, estátuas. Mas também era muito fascinante pra mim".
O diretor dedicou dez anos estudando a vida de Nhô João, como João de Camargo é carinhosamente chamado. Durante esse período, enfrentou desafios para arrecadar os quase R$ 6 milhões necessários para produzir o longa-metragem.
Superando preconceitos e dificuldades
Betti encontrou resistência na época por se tratar de um filme sobre um homem negro. "Tive dificuldades porque era um filme sobre um homem negro. As pessoas não conseguiam entender a importância desse homem negro", revela o diretor. "Embora tenha a igreja fantástica que ele construiu, mesmo assim, muita gente questionava o motivo de eu fazer um filme sobre ele".
O desafio de retratar João de Camargo coube a Lázaro Ramos, então um jovem ator que hoje é reconhecido nacionalmente. "Paulo Betti, de forma muito apaixonada, me falou que tinha uma pessoa da cidade onde ele nasceu que o Brasil precisava conhecer", conta Ramos.
O papel representou um grande desafio para o ator, que precisou interpretar o personagem desde os 20 e poucos anos até a velhice. "Cafundó é um resgate de memória importante que precisava ser ampliada pra mais gente conhecer", completa.
A magia da transformação
No primeiro teste de caracterização, a direção já enxergou em Lázaro Ramos a figura do religioso. Pessoas que conviveram com João de Camargo descreviam-no como um homem negro, magro, sempre elegante, com aparência serena e olhar acolhedor.
"Não me acho parecido, não, mas, magicamente, coisas que acontecem na magia do cinema, vendo o filme eu percebo uma proximidade", analisa Lázaro. "Talvez porque eu fui alimentado com muita informação do Paulo, leituras, fotos que eu ficava olhando pra tentar pegar o espírito dele".
Uma produção marcada pela união
O filme contou com uma equipe de mais de 200 pessoas, incluindo Cassiane Souza como produtora local. "Eu comecei como captadora de recursos, junto com o Paulo, indo nas empresas para a gente conseguir dinheiro para a produção do longa", relembra.
A produção enfrentou desafios logísticos, como a necessidade de mulas para as filmagens, conseguidas em Itapetininga. Muitos moradores de Sorocaba participaram como figurantes, criando uma conexão especial com a comunidade.
Leandro Firmino, já conhecido por seu papel em Cidade de Deus, interpretou Cirino, amigo de João de Camargo. Para o ator, Cafundó representou um teste pessoal em um momento de reflexão sobre sua carreira.
Histórias que se entrelaçam
A atriz Leona Cavali, que interpretou Rosário (companheira que abandonou João de Camargo), tinha uma conexão familiar com a história. "Minha avó era devota de João de Camargo", revela. "O Brasil é negro, é indígena, também é branco, mas a predominância não é essa. Então, o fato da cultura agora estar trazendo essa realidade do povo brasileiro é um ganho".
Entre os moradores locais que participaram do filme estava Wesley Aprile, hoje formado em engenharia, que interpretou Natalino. "O filme, sem dúvidas, foi porta de entrada para o mundo da arte", celebra.
Reconhecimento e legado duradouro
Cafundó conquistou treze prêmios nacionais e internacionais, incluindo cinco no Festival de Gramado antes mesmo da estreia nos cinemas. Lázaro Ramos comentou sobre o reconhecimento durante visita a Sorocaba: "Eu sou bem privilegiado porque já ganhei 23 prêmios com os outros filmes todos que eu fiz, mas nunca tive dinheiro, esse prêmio tem essa vantagem de ter um dinheirinho, R$ 30 mil".
A história de Nhô João também inspirou um samba-enredo do Império de Casa Verde em 2003, marco para a escola que desfilava pela primeira vez no grupo especial.
Mais de 80 anos após sua morte, João de Camargo continua sendo símbolo de esperança, acolhimento e resistência negra. Como resume Leandro Firmino: "Um homem preto, que deveria ter a vida contada nas escolas".
A Capela Senhor do Bonfim, erguida há mais de um século, permanece como testemunho silencioso dessa história que ultrapassa gerações e inspira devoção, como atesta Paulo Betti: "Eu sou devoto de João de Camargo".