Um grupo de 17 artesãs da Associação Artesanal Chitarte, localizada em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, está dando um novo significado a um tecido profundamente enraizado na história brasileira. A coleção de moda intitulada "Das Marias" transforma a chita, frequentemente associada ao cotidiano doméstico e às economias populares, em peças de alto valor artístico que dialogam com ancestralidade e técnicas tradicionais.
Da história colonial às passarelas contemporâneas
O tecido de chita, leve e de algodão, conhecido por suas estampas vibrantes, tem uma trajetória marcante no Brasil. Conforme explicou a mestra em Gestão de Políticas Públicas e artesã da Chitarte, Bárbara Nunes, em entrevista ao g1, a chita chegou a Cachoeira ainda no período colonial, com o objetivo inicial de servir como vestimenta para pessoas negras escravizadas.
"A chita se espalhou por todo o território brasileiro, se popularizou, e a gente sabe que a partir do momento que ela se populariza, a história vai se perdendo", afirmou Bárbara. "Então, a gente faz, também, uma releitura desse tecido, destacando o protagonismo e o pertencimento dele que, muitas vezes, as pessoas não conhecem".
O processo criativo e a homenagem às Marias
Durante oito meses, as artesãs se dedicaram a um intenso processo de experimentação. Elas exploraram cores, tramas e composições para ampliar seu repertório, mas sempre mantendo a essência do bordado e das peças que já produziam. O resultado são criações onde a chita é a protagonista, enriquecida com técnicas como:
- Bordados tradicionais
- Recortes e aplicações
- Uso de sementes e couro
- Incorporação de sacolas plásticas e retalhos
A inspiração veio das mulheres que moldaram a vida das próprias artesãs: suas mães, avós e vizinhas. Essa homenagem está cristalizada no nome da coleção. "O significado de Maria é muito forte! É um nome que, muitas vezes, era falado de forma pejorativa quando não se sabia o nome de uma mulher, principalmente das negras", destacou Bárbara Nunes.
Inovação artesanal e impacto social
A viabilidade do projeto foi garantida pelo Laboratório de Inovação Artesanal (LAB) da Rede Artesol, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que atua há mais de 25 anos fortalecendo o artesanato de tradição cultural no Brasil. A iniciativa promove capacitação, inclusão digital e acesso a mercados, valorizando o fazer manual como instrumento de desenvolvimento sustentável.
Para a antropóloga e coordenadora do projeto, Helena Kussik, executar esse tipo de projeto é fundamental para a valorização cultural e social do artesanato. "É uma demanda que veio muito do nosso diálogo com as associações... porque elas têm o desejo e a necessidade de inovar, de criar novos produtos, de ter coleções, de poder apresentar isso de forma organizada no mercado", disse.
Os números da Rede Artesol em 2023 impressionam:
- Atuação em 25 estados e 539 municípios
- 290 artesãos capacitados em campo
- 3 grupos acompanhados no Laboratório de Inovação
- Impacto direto em 85 artesãos
- Criação de 38 novos produtos
Esse trabalho fortalece a renda, a autonomia feminina, a inovação e a sustentabilidade cultural.
A coleção "Das Marias" será oficialmente lançada no dia 13 de dezembro, em um local de grande prestígio: o Museu A Casa do Objeto Brasileiro, em São Paulo, referência nacional em projetos e exposições de artesanato e design. O evento marca não apenas o lançamento de uma linha de moda, mas a celebração da memória, da resistência e do poder transformador do artesanato brasileiro.