Uma emocionante carta guardada por quase cinco décados revela os primeiros traços da sensibilidade que marcaria uma das vozes mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ana Maria Gonçalves se torna nesta sexta-feira (7) a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL) em seus 128 anos de história.
Das memórias de infância ao reconhecimento literário
A professora aposentada Elizabeth Fernandes, carinhosamente chamada de Tia Beth, guardou como tesouro uma carta escrita por sua ex-aluna em 1976, quando Ana Maria tinha apenas seis anos. O documento, amarelado pelo tempo, mostrava já na infância a sensibilidade que caracterizaria sua obra: "Tia Beth, eu sinto o seu amor no meu coração. Tia Beth, eu não estou mentindo, não. Se você está bem pode contar comigo", escrevia a pequena Ana Maria.
A antiga professora se emociona ao relembrar a aluna que se tornaria imortal: "Ana Maria era uma criança muito ativa, muito inteligente e muito dócil. Ela não só era amiga da tia Beth, mas de todos da sala. Era um encanto de criança, muito apegada a todos, estudiosa, com os cadernos impecáveis. A letra era linda demais".
Uma posse histórica na Academia Brasileira de Letras
A cerimônia de posse ocorreu às 20h no Petit Trianon, sede da ABL no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela internet. A escritora mineira de 54 anos assume a cadeira número 33, sucedendo o linguista Evanildo Bechara, e se torna não apenas a primeira mulher negra imortal, mas também a mais jovem entre os atuais acadêmicos.
O momento contou com simbolismos significativos: Ana Maria foi recebida pela acadêmica Lilia Schwarcz, recebeu o colar das mãos de Ana Maria Machado e o diploma entregue por Gilberto Gil. Após a cerimônia, um jantar com cardápio africano foi oferecido a aproximadamente 300 convidados, seguido por uma festa na Casa Savana organizada por amigos da autora.
Trajetória literária e reconhecimento nacional
Nascida em Ibiá, Minas Gerais, em 13 de novembro de 1970, Ana Maria Gonçalves trabalhou por 15 anos com publicidade antes de se dedicar integralmente à literatura. Sua obra mais conhecida, "Um defeito de cor", conquistou o prêmio Casa de Las Américas em 2007 e é considerada fundamental para compreender a história do Brasil.
O romance de 952 páginas narra a trajetória de Kehinde, mulher negra escravizada na Bahia, inspirada em Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama. A importância da obra foi reconhecida além dos círculos literários - em 2024, "Um defeito de cor" foi enredo da Portela no Carnaval do Rio de Janeiro.
Além de romancista, Ana Maria atua como professora de escrita criativa, roteirista e dramaturga, tendo sido escritora residente em prestigiadas universidades norte-americanas como Tulane, Stanford e Middlebury. Sua posse na ABL representa um marco na diversificação da instituição e no reconhecimento da contribuição negra para as letras nacionais.