Um símbolo urbano que fez parte do cotidiano de gerações de brasileiros ganhou destaque internacional ao ser peça-chave na reconstrução de uma época. O orelhão, aquela cabine telefônica em formato de ovo, foi utilizado em diversas cenas do filme O Agente Secreto para recriar com autenticidade o cenário da década de 1970.
A invenção que virou símbolo nacional
A imagem do personagem Marcelo, vivido por Wagner Moura, utilizando um orelhão se tornou uma das marcas registradas da produção cinematográfica, que é a candidata do Brasil ao Oscar de 2026. Por trás desse design icônico, está a história da arquiteta Chu Ming Silveira. Nascida em Xangai, na China, em 1941, ela viveu a maior parte de sua vida no Brasil, onde criou um objeto que chegou a ter mais de 50 mil unidades espalhadas pelo país.
Em entrevista ao podcast Witness History, da BBC, seu filho, Alan Chu, também arquiteto, falou sobre o legado da mãe. "Eu lembro de sentir orgulho dela, porque ela tinha projetado algo que estava em todo lugar nas ruas", contou Alan. "É muito interessante porque normalmente importamos ideias e designs. Mas o orelhão é uma criação nacional, uma invenção brasileira. É o símbolo da nossa criatividade e design."
Da China para o Brasil: a trajetória de Chu Ming
A vida de Chu Ming Silveira foi marcada por grandes mudanças. Após a vitória comunista na China em 1949, sua família, que pertencia à nobreza, foi forçada a deixar o país. Após uma viagem de três meses de navio, eles desembarcaram no Rio de Janeiro e, posteriormente, se estabeleceram em São Paulo, no bairro de Pinheiros.
Formada em arquitetura, Chu Ming não demorou a conseguir um emprego na companhia telefônica brasileira. Foi em 1971 que ela recebeu a missão de solucionar um problema: a falta de telefones públicos adequados no país. As tentativas anteriores, com cabines grandes, eram caras, ocupavam muito espaço e sofriam vandalismo.
O desafio era criar uma solução barata, resistente e visualmente agradável. "Nós tínhamos um na nossa casa. Era o protótipo, o primeiro. Ele era branco e ficava no nosso jardim", recorda Alan Chu.
O sucesso do design e o reconhecimento tardio
O design revolucionário do orelhão não foi apenas estético. O formato de ovo foi escolhido por suas qualidades acústicas, refletindo o ruído externo para um ponto fora da cabine, o que garantia mais privacidade e menos barulho durante as ligações. A cabine, que inicialmente recebeu nomes como "Chu I" e "Tulipa", acabou batizada pelo público como orelhão.
O sucesso foi tão grande que o modelo foi exportado. Adaptações do projeto brasileiro foram instaladas em países como Peru, Colômbia, Paraguai, Angola, Moçambique e até na China, terra natal de sua criadora.
Apesar do impacto de sua criação, o reconhecimento pleno do trabalho de Chu Ming Silveira veio apenas após sua morte, em 1997. Seu marido, Clóvis, foi fundamental nesse processo, criando um site para divulgar sua história e seu legado. Em 2017, o Google homenageou a arquiteta com um doodle em sua página inicial.
Um legado que permanece
Com a popularização dos celulares, os orelhões deixaram de ser uma necessidade, mas nunca perderam seu status de ícone. Em 2014, por exemplo, o rei Pelé autografou uma das cabines na Avenida Paulista, em São Paulo, em uma ação publicitária.
Para Alan Chu, o objeto carrega um componente de humor e criatividade que cativa as pessoas. Hoje, mais do que um equipamento de comunicação, o orelhão é um símbolo de uma era e um testemunho da capacidade de inovação brasileira, idealizada por uma mulher imigrante que deixou sua marca nas ruas do país.
"Era muito comum para nós, para minha geração, um objeto natural na cidade porque não havia celulares. A gente usava muito. É parte da nossa memória", finaliza Alan. A história de Chu Ming e de sua criação única continua a inspirar, mostrando como o design pode se tornar parte indelével da identidade e da cultura de uma nação.