Um levantamento chocante divulgado nesta terça-feira (2) revela a dimensão da violência sexual contra crianças e adolescentes no estado do Pará. Os números mostram uma realidade alarmante, onde a infância de meninas está sob grave ameaça.
Os números da violência
Entre os anos de 2019 e 2023, o Pará registrou 19.631 ocorrências de crimes sexuais contra pessoas de 0 a 17 anos. O dado é parte de um estudo produzido pelo Coletivo Futuro Brilhante, com base em informações oficiais da Segurança Pública. A pesquisa foi apresentada durante o Seminário Estadual de Revisão do Plano Decenal Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, em Belém.
A estatística mais impactante mostra que, desse total, 17.518 vítimas são meninas. Isso significa que quase 90% dos casos registrados têm meninas como alvo. A violência atinge todas as faixas etárias: foram 8.437 casos envolvendo crianças de 0 a 11 anos e 11.194 casos com adolescentes entre 12 e 17 anos.
O cenário mais comum para a ocorrência dos crimes é a própria residência da vítima, superando locais públicos e instituições. A maior parte dos registros acontece nos turnos da manhã e da tarde, indicando que a rotina cotidiana e períodos de menor supervisão aumentam a vulnerabilidade.
Perfil dos agressores e municípios mais críticos
O estudo, que analisou registros de todos os 144 municípios paraenses, aponta um padrão claro sobre os suspeitos. Mais de 17 mil registros indicam homens como autores, contra pouco mais de 300 casos envolvendo mulheres. A maioria dos agressores são pessoas conhecidas da vítima, como tios, padrastos, vizinhos, parentes próximos ou parceiros afetivos da mãe.
Quando observada a taxa proporcional, três municípios se destacam negativamente. Vitória do Xingu lidera o ranking estadual, seguida por Salvaterra e Soure, ambas localizadas no arquipélago do Marajó.
Contexto territorial e vulnerabilidades
Para especialistas, os dados vão além dos números e revelam padrões territoriais profundos. Diego Martins, mestre em Segurança Pública que participou do seminário, analisa que os territórios com maiores índices compartilham vulnerabilidades sociais históricas.
“Quando observamos Vitória do Xingu, Salvaterra e Soure, enxergamos territórios onde a vulnerabilidade social é profunda e histórica”, afirma Martins. “A soma de pobreza, desigualdade, ausência do Estado, turismo desregulado e relações de gênero desiguais cria um ambiente em que a violência sexual encontra menos barreiras para acontecer.”
Em Vitória do Xingu, pesquisas acadêmicas da Universidade da Amazônia (UNAMA) descrevem um município marcado por transformações abruptas e tensões socioeconômicas ligadas à instalação da Usina Hidrelétrica Belo Monte e à presença de grandes empreendimentos extrativistas. Estudos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) associam esse cenário de aumento da desigualdade e fragilidade dos serviços públicos ao crescimento de crimes de gênero e sexuais.
Já no Marajó, pesquisas da Universidade Federal do Pará (UFPA) identificam um acúmulo de fatores de risco: pobreza extrema, longas distâncias, precariedade do Estado, desigualdade de gênero e turismo sem regulação. Em Salvaterra, estudos apontam vulnerabilidade ao turismo sexual. Em Soure, diagnósticos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificam a naturalização da violência doméstica, alta subnotificação e escassez de estruturas de proteção.
Diego Martins destaca que esse contexto amplia a capacidade de repetição dos crimes. “Esses elementos não produzem o estupro por si só, mas reduzem drasticamente os mecanismos de prevenção, denúncia e proteção. E onde há menos fiscalização, menos presença de serviços e mais dependência econômica, o agressor encontra terreno fértil para agir”, conclui o especialista.
O Coletivo Futuro Brilhante, responsável pela coordenação local do seminário e pela pesquisa, atua desde 2014 na prevenção da violência sexual infantojuvenil e desenvolve ações educativas em escolas públicas do Pará. O evento em Belém reuniu representantes de órgãos públicos, sociedade civil, academia e coletivos, na Escola Judicial do Tribunal de Justiça do estado, em uma iniciativa promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.