A morte de Gerson de Melo Machado, de 19 anos, após invadir o recinto da leoa Leona no Parque Zoobotânico Arruda Câmara, em João Pessoa, no último domingo (30/11), vai muito além de um incidente isolado. A tragédia revela uma história profunda de abandono, adoção frustrada, transtornos mentais não tratados e uma sucessão de falhas do poder público que marcaram a vida do jovem.
Uma vida marcada pelo abandono e diagnósticos tardios
Muito antes de escalar o muro de seis metros do zoológico, Gerson já percorria um caminho repleto de vulnerabilidades. Ainda criança, foi afastado da mãe, diagnosticada com esquizofrenia – condição que também afetava sua avó materna. Aos 10 anos, ele apareceu pela primeira vez no Conselho Tutelar, depois de fugir sozinho de um abrigo e ser encontrado caminhando à beira de uma estrada.
Enquanto seus quatro irmãos conseguiram ser adotados, Gerson passou de instituição em instituição, sendo rejeitado sucessivamente. “Ele foi privado do direito fundamental a uma família”, afirma a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que acompanhou seu caso por quase uma década.
Somente em 2023, aos 19 anos, Gerson recebeu diagnósticos formais: transtorno de conduta, deficiência intelectual e esquizofrenia. O laudo recomendava tratamento integral em saúde mental, mas o jovem nunca recebeu o acompanhamento necessário. Sonhava em ser domador de leões e viajar para a África. Em um episódio que ilustra seu estado, Verônica relata que ele foi encontrado escondido no trem de pouso de um avião, acreditando que assim chegaria ao continente africano.
O ataque fatal e a reação do animal
Na manhã do ataque, tudo indica que Gerson estava em surto psicótico. Ele escalou sozinho a parede do recinto, ultrapassou grades de segurança e usou uma árvore interna para acessar a área onde a leoa Leona descansava. Visitantes registraram o momento em que o jovem descia pela árvore e foi rapidamente alcançado e atacado pelo felino.
Gerson morreu no local devido a um choque hemorrágico, causado por ferimentos graves no pescoço. A prefeitura de João Pessoa afirmou que o parque segue normas técnicas de segurança e classificou o episódio como um ato “imprevisível”. A Polícia Civil, no entanto, investiga a possibilidade de suicídio.
Leona, a leoa, ficou estressada após o ataque, mas obedeceu aos comandos de treinamento e foi recolhida sem necessidade de tranquilizantes. A direção do parque descarta qualquer hipótese de sacrificar o animal, que agiu por instinto ao defender seu território. Ela seguirá sob monitoramento de veterinários e especialistas. O parque foi fechado temporariamente e declarou luto oficial.
Uma tragédia anunciada por falhas sistêmicas
Para quem acompanhou a trajetória de Gerson, a tragédia não começou no zoológico. Ela foi construída ao longo de anos de negligência, abandono e ausência de políticas efetivas de saúde mental. Brechas institucionais sucessivas falharam em proteger um jovem em evidente situação de vulnerabilidade.
A conselheira Verônica Oliveira resume o sentimento de quem testemunhou essa história: “Todo o poder público falhou com ele e com a família”. O caso expõe a urgência de discussões sobre:
- A rede de proteção a crianças e adolescentes em situação de risco.
- O acesso ao tratamento em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).
- A integração entre conselhos tutelares, abrigos e serviços de saúde.
A morte de Gerson é um alerta sombrio sobre as consequências humanas quando o Estado não cumpre seu papel de protetor dos mais vulneráveis. Enquanto as investigações sobre as circunstâncias exatas da invasão continuam, sua história pessoal permanece como um triste testemunho de oportunidades perdidas.