
Quem passa por ele hoje, vestindo a batina branca com dignidade, mal imagina o inferno que já foi sua vida. Mas os olhos — sempre os olhos — ainda guardam um pouco daquela dor que teima em não sumir completamente.
"Fui escravo do crack por 12 anos", conta, enquanto arruma as velas no altar da pequena capela. "Dormia no chão da Cracolândia em São Paulo, cheirava cola, vendia até a alma por mais uma pedra."
O dia que tudo mudou
Foi numa madrugada chuvosa de 2018 que aconteceu o que ele chama de "milagre ordinário". Desmaiado numa vala, foi encontrado por um grupo de fiéis que voltava de uma vigília. "Acordei num colchonete, com fome, mas limpo. Alguém tinha me lavado."
Na parede do abrigo, um crucifixo torto parecia olhar pra ele. "Na hora veio na cabeça: 'Ou você morre hoje, ou vive de verdade'."
Longe da teoria
A recuperação? Nada daquelas historinhas bonitas de filmes. "Chorei, xinguei, quebrei portas. Até tentei fugir duas vezes." Mas algo — ou Alguém — o fez ficar. Talvez fossem os olhos cansados da irmã Maria, que insistia em lhe dar café mesmo quando ele cuspia no chão.
Anos depois, formado em teologia e ordenado diácono, ele criou o projeto "Mãos que Levantam" na região do porto de Santos. "Lá a gente não fica de sermão. Oferece banho, comida e, se quiserem, uma oração."
Os números impressionam:
- + de 200 pessoas assistidas mensalmente
- 37 ex-dependentes químicos reintegrados às famílias
- 12 "filhos" que hoje trabalham como voluntários
Na pele do problema
O segredo? "A gente fala a mesma língua", diz, mostrando as cicatrizes nos braços. "Quando conto que já roubei até tênis de cadáver no IML, eles sabem que não tô inventando."
Numa esquina próxima à antiga cracolândia santista, ergueu-se uma pequena capela. "Chamo de 'Igreja dos Esfarrapados'. Todo mundo entra — cheirando, tremendo, sujo. Deus não tem nojo."
Seu maior orgulho? "Ver meus 'cracudos' formados, trabalhando, criando os filhos que um dia abandonaram." E solta aquela gargalhada que já virou marca registrada na comunidade. "Quem diria, né? Eu, um ex-nóia, agora batizando netos dos meus companheiros de rua!"
Enquanto ajusta a estola para a próxima missa, finaliza: "Não sou santo, só um sobrevivente. Mas se minha história fizer um viciado acreditar que dá pra mudar, já valeu a pena toda a queda."