Casamento infantil viraliza no TikTok com meninas de 14 anos
Casamento infantil viraliza no TikTok com meninas

Uma tendência preocupante vem ganhando espaço no TikTok: meninas brasileiras, algumas aparentando menos de 14 anos, compartilham vídeos mostrando sua rotina de vida conjugal. Os conteúdos, que acumulam milhões de visualizações, utilizam hashtags como #casadaaos14 e #casadaaos15, levantando alertas sobre a romantização do casamento infantil.

Fenômeno nas redes sociais

Um vídeo em particular chamou a atenção: uma garota, que parece ser menor de idade, aparece preparando a marmita do "marido" enquanto diz: "Montando a marmita do marido". A publicação, de 2023, ultrapassou 2 milhões de visualizações e marcou a hashtag #casadaaos14, que reúne pelo menos 213 vídeos na plataforma.

Um perfil com mais de 190 mil seguidores publica regularmente conteúdo mostrando rotina doméstica, atualizando a hashtag conforme a idade da garota avança. Os vídeos incluem receitas, limpeza e tarefas domésticas, sempre com menções ao suposto marido. Outro perfil na mesma hashtag traz a legenda "mini rotina, casada e grávida aos 14 anos".

A investigação revelou que existem 582 vídeos com #casadaaos15 e 32 com #casadaos13. Em comum, meninas que relatam a rotina de uma vida de casal - em alguns casos, os companheiros aparecem ou são mencionados pelas jovens.

Resposta das plataformas e especialistas

O TikTok removeu alguns desses conteúdos e um dos perfis citados após ser contatado pela reportagem. A plataforma informou que os conteúdos compartilhados foram removidos por violarem as Diretrizes da Comunidade.

Para Mariana Zan, do Instituto Alana, mesmo com o recente ECA Digital sancionado pelo presidente Lula em setembro, esses conteúdos podem não ser considerados uma violação explícita. No entanto, ela alerta que, independentemente da legalidade, esse material "romantiza" o casamento infantil.

"A presença desse fenômeno nas redes coloca como 'aceitável, bonito ou romântico' uma adolescente ou criança estar casada", afirma a pesquisadora. "Isso reforça estereótipos de gênero, estereótipos de idade. E, ao mesmo tempo, retira o caráter de violência".

Realidade brasileira alarmante

Os dados do Censo Demográfico do IBGE mostram que 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos viviam em união conjugal em 2022, sendo 77% meninas. Embora os técnicos do instituto afirmem que o número pode estar superestimado, especialistas ressaltam que a existência desses casos não é surpresa.

Pela legislação brasileira, é proibido casar antes dos 16 anos, mesmo com consentimento dos pais. A apuração identificou contas que são de crianças de fato e outras que são de pessoas fora dessa faixa etária, mas que utilizam as hashtags para ganhar destaque.

Para Raquel Saraiva, presidente do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), os jovens utilizam essas postagens principalmente para viralizar, mas também há um interesse em mostrar suas experiências e receber validação.

"É como se tivesse sido uma decisão delas. Tem umas que dizem: 'Ah, fugi de casa e me casei' ou 'porque eu realmente decidi casar aos 14 anos', 'as pessoas deviam julgar menos e apoiar mais'. Só que um casamento abaixo de 16 anos é nulo pela lei, nem devia acontecer", explica Raquel.

Impacto social e responsabilidade

Viviana Santiago, diretora executiva na Oxfam Brasil, explica que "até bem pouco tempo, o Brasil era o quinto país do mundo em casamentos infantis". Ela destaca que o casamento infantil pode ser considerado um fenômeno invisível com múltiplas causas.

"O casamento infantil é um fenômeno invisível porque na verdade ele é considerado uma solução moral. Aquilo que leva uma menina a estar casada, embora isso seja um processo de violação de direitos, é algo que não é entendido dessa forma", afirma Santiago.

Especialistas apontam que as uniões conjugais na adolescência aparecem como "solução" para situações como gravidez não planejada, pobreza, violência intrafamiliar e imposições de gênero.

Quanto à moderação de conteúdo, Saraiva comenta que "existe uma falha de moderação de conteúdo. Porque se o casamento aos 14 anos é proibido por lei, um conteúdo dessa natureza devia ser considerado também um conteúdo sensível".

Mariana Zan reforça que as plataformas têm responsabilidade compartilhada na proteção de crianças e adolescentes: "Elas estão inseridas nessa comunidade e têm o dever de garantir direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital".