Um levantamento alarmante divulgado pela Prefeitura de Campinas, no interior de São Paulo, revela uma mudança preocupante no perfil da violência contra crianças no município. Pela primeira vez desde 2019, o abuso sexual superou a negligência ou abandono e se tornou o tipo de violência mais comum registrada contra crianças de zero a 11 anos. Os dados são do boletim do Sistema de Notificação de Violências (Sisnov), divulgado na quarta-feira (3).
Números que assustam: a nova realidade da violência infantil
O estudo, que reúne notificações entre 2019 e 2024, mostra que, somente em 2024, foram registrados 260 casos de abuso sexual contra crianças na faixa etária de zero a 11 anos. Esse número representa 36,8% das 707 notificações de violência infantil daquele ano e configura um aumento de 5,3% em relação a 2023.
Em contrapartida, os casos de negligência ou abandono, que lideravam as estatísticas anualmente, caíram para a segunda posição em 2024, com 249 registros (35,2%). Isso reflete uma redução de 6% no acumulado. Para Juliana Bassul, responsável pelo Sisnov, a mudança reflete, em parte, um trabalho intensificado de conscientização.
"Hoje, temos um trabalho de conscientização nas escolas, nos hospitais e UPAs, que é onde mais chega esse tipo de violência contra crianças e adolescentes. A gente conseguiu com que as pessoas notificassem mais", explicou Bassul. Ela destaca que o aumento nas notificações de violência sexual é resultado de uma ação intersetorial para sensibilizar a rede de proteção e alcançar as vítimas.
Escalada da violência e perfil dos agressores
A administração municipal classifica os dados como uma "escalada contínua na violência contra os mais jovens". No período analisado, 39% de todas as notificações envolveram crianças (3.376 casos) e adolescentes (2.626). Entre as crianças, o aumento nos registros de violência foi de 47,6%, saltando de 479 casos em 2019 para 707 em 2024. Entre os adolescentes, o crescimento foi ainda mais acentuado: 77%, passando de 356 notificações em 2019 para 630 em 2024.
O boletim também traça um perfil dos principais autores da violência, com dados alarmantes sobre a proximidade com a vítima:
- Entre as crianças: os cuidadores diretos (mãe, pai, madrasta ou padrasto) são os principais autores, representando 68,5% do total de casos. Familiares ou conhecidos aparecem em seguida, com 21,6%.
- Entre os adolescentes: os cuidadores diretos também lideram, mas com uma proporção menor (40% das notificações). Chama a atenção que a categoria "própria pessoa" totaliza 26,8% dos casos, indicando autoviolência, seguida por familiares ou conhecidos (16,4%).
As notificações de violência sexual contra adolescentes tiveram um salto dramático: de 95 em 2023 para 163 em 2024, um aumento de 71,6%. Este é o maior número já registrado em um único ano na série histórica.
Mulheres são as maiores vítimas e a importância da detecção precoce
Considerando todas as faixas etárias, a violência física ainda é a mais frequente, com 5.123 notificações (33% do total). Na sequência vêm as tentativas de suicídio (3.791 notificações, 25%) e a violência sexual (2.459, 16%). As mulheres são a grande maioria das vítimas, correspondendo a 71,9% do total das notificações.
O boletim destacou um ponto crucial: a Rede Mário Gatti, porta de entrada para casos agudos, é responsável pela maior parte das notificações (6.619 casos). "A predominância dessas notificações sugere que muitos episódios de violência chegam aos serviços apenas em estágios mais graves, o que reforça a necessidade de fortalecimento da detecção precoce", alerta o documento.
Juliana Bassul reforça a necessidade de políticas públicas focadas na juventude. "Eu vejo muitos jovens que não têm estrutura mental, amor, e as políticas públicas têm que focar nos jovens. Tem que ter esporte, cultura, lazer e cidadania, porque muitas vezes o adolescente fica nesse ciclo vicioso familiar e não consegue sair", analisou.
Os dados servem como um alerta urgente para a sociedade e para as autoridades sobre a necessidade de proteger crianças e adolescentes, com foco especial na identificação e no combate ao abuso sexual, que agora assume a triste liderança nas estatísticas de violência infantil em Campinas.