
O cheiro de fumaça no ar não é novidade para quem vive em São Félix do Xingu, sul do Pará. Mas o que poucos imaginam é que muitas dessas labaredas que assombram a floresta nascem bem ali, nos mesmos lugares onde o gado pasta tranquilamente. Uma investigação minuciosa mostrou algo que, francamente, não chega a surpreender quem conhece a região: as fazendas de criação de boi são o berço do fogo.
O mapa de calor não mente. Os satélites captam com precisão cruel como as chamas brotam dessas propriedades rurais antes de se espalharem como praga pela vegetação nativa. E o pior? Muita gente por aqui ainda encara o fogo como ferramenta de trabalho, uma herança cultural difícil de apagar.
O paradoxo pecuarista
Enquanto o mundo discute aquecimento global do outro lado do planeta, aqui a realidade é mais imediata e complexa. Os pecuaristas locais — muitos deles terceira geração na atividade — defendem suas práticas com argumentos que soam quase nostálgicos. "Sempre foi assim", dizem alguns, enquanto acendem outro cigarro e observam o horizonte embaçado pela fumaça.
Mas os números contam outra história. Só neste ano, mais de 3.500 focos de calor foram detectados no município. E adivinhem onde muitos começaram? Pois é.
- Fazendas com pastagens degradadas usando fogo para "renovar" a vegetação
- Áreas recém-desmatadas sendo limpas para abrir espaço para mais boi
- E aquela velha mentalidade de que terra "limpa" é terra produtiva
Não é simplesmente maldade, entende? É uma lógica perversa que se perpetuou por décadas. Uma senhora me contou, com os olhos cheios de cansaço, que seu avô já dizia que "fogo bom é fogo que queima o mato e deixa o capim crescer". Como contestar séculos de tradição?
A fiscalização chega, mas será que convence?
Os fiscais ambientais aparecem de vez em quando, multas são aplicadas, mas a sensação é de enxugar gelo. Um agente me confessou, sob condição de anonimato: "Às vezes me sinto como um professor tentando ensinar álgebra para quem nunca aprendeu a somar". A metáfora é forte, mas reflete o abismo entre a legislação ambiental e a realidade local.
E tem mais: muitos produtores reclamam da falta de alternativas. "Querem que eu faça o quê? Magicamente transforme pasto velho em pasto novo sem gastar um real?" questiona um pecuarista que prefere não se identificar. A raiva no tom de voz é palpável.
O que dizem os números
Os dados são eloqüentes, mesmo que ninguém queira ouvi-los:
- São Félix do Xingu tem o maior rebanho bovino do Brasil — impressionantes 2,6 milhões de cabeças
- Mais de 60% do território municipal já foi convertido em pastagem
- E o fogo continua sendo o método mais barato — e controverso — de manejo
Parece um daqueles problemas sem solução, não é? Mas calma, a história não termina aqui.
Há esperança no horizonte?
Alguns produtores — poucos, é verdade — começam a enxergar luz no fim do túnel. Tecnologias como irrigação e adubação verde ganham espaço timidamente. Programas de assistência técnica tentam mostrar que é possível produzir sem precisar botar fogo em tudo.
Mas a mudança é lenta, dolorosamente lenta. Enquanto isso, a floresta continua queimando, o clima esquenta e o mundo lá fora aponta o dedo. Aqui dentro, a sensação é de estar preso num ciclo vicioso do qual ninguém sabe como escapar.
No final das contas, São Félix do Xingu reflete um Brasil profundo que poucos compreendem. Onde tradição e progresso colidem, onde o fogo que aquece o churrasco de domingo é o mesmo que consome o futuro. E no meio disso tudo, o gado pasta, indiferente.