Catadores de caranguejo na Baía de Guanabara: a luta diária entre o sustento e a preservação
Catadores transformam lixo em sustento na Baía de Guanabara

Era um daqueles amanheceres cinzentos típicos da Baía — o cheiro de maresia misturado com algo mais denso, quase palpável. Enquanto a cidade ainda esfregava os olhos, João* já estava de botas enfiadas na lama, saco plástico na mão. Não à toa chamam eles de "garimpeiros do mangue": catam de tudo, desde garrafas PET até peças de carro enferrujadas. Mas o alvo principal? Caranguejos. Aqueles mesmos que, ironicamente, estão sumindo justamente por causa do lixo que ajudam a recolher.

O pão nosso de cada dia vem do lixo alheio

"Tem dia que a gente tira mais latinha que crustáceo", conta Maria, 54 anos, enquanto abre com destreza uma armadilha improvisada. O ritmo é frenético — cada movimento calculado para não desperdiçar energia. Afinal, aqui não existe horário comercial: quando a maré baixa, é hora de trabalhar. Quando sobe, voltar pra casa com pelo menos o suficiente pra comprar um quilo de arroz e o gás.

Os números assustam (e explicam muita coisa):

  • Estimam que 18 toneladas de resíduos cheguem diariamente aos manguezais
  • Um catador experiente consegue juntar até 50kg de materiais recicláveis por maré
  • Os caranguejos-uçá diminuíram quase 70% na última década

Entre a cruz e a espada ambiental

O paradoxo é amargo. Enquanto ONGs aplaudem o serviço ambiental involuntário — afinal, retiram microplásticos antes que cheguem ao oceano —, os próprios catadores sabem que estão cavando a própria cova. "Antes a gente tirava três cento de caranguejo num dia bom. Agora? Se der cinquenta é milagre", desabafa Seu Zé, 62 anos, mostrando as mãos calejadas que já não conseguem fechar direito.

E não é só a poluição. Com o avanço imobiliário, os manguezais viraram artigo de luxo. "Do outro lado da ponte, um metro quadrado vale mais que nosso mês de trabalho", comenta um jovem que pede para não ser identificado. A revolta transborda junto com o chorume das sacolas rasgadas.

Quando a sobrevivência vira ativismo

Curioso como a necessidade aguça o engenho. Alguns começaram a separar os resíduos por tipo — latinhas de um lado, plástico duro de outro. Outros improvisam armadilhas menos agressivas, feitas com bambu em vez de redes de nylon. Pequenos gestos que, somados, fazem diferença no ecossistema.

Mas a verdade é que ninguém aqui se considera ambientalista. "Isso é coisa de rico que tem tempo pra pensar no futuro", provoca Dona Marta, enquanto amarra um fardo de garrafas com corda de sisal. O futuro, pra ela, se resume às próximas seis horas — até a maré encher de novo.

Enquanto isso, na orla da Barra, turistas fotografam o pôr-do-sol dourado sobre as águas... sem notar os vultos curvados entre os mangues, fazendo o trabalho sujo que mantém a paisagem (quase) fotogênica.