O ex-rei da Espanha, Juan Carlos I, tenta uma difícil reconciliação com o passado e com o país através de uma polêmica autobiografia, mas a iniciativa parece estar longe de alcançar seu objetivo. Cinco anos após deixar a Espanha em meio a uma série de denúncias de corrupção e tráfico de influência, o monarca emérito, agora com 87 anos e exilado em Abu Dhabi, lançou o livro "Reconciliación: Memorias", escrito em parceria com a historiadora francesa Laurence Debray.
Uma tentativa fracassada de reescrever a história
A obra, como sugere o título, é uma tentativa declarada de Juan Carlos de fazer as pazes e reescrever a narrativa que levou à sua derrocada. O monarca deixou o país em 2020, em meio a um turbilhão de escândalos, para "não prejudicar" o reinado de seu filho, Felipe VI. Na época, ele afirmou, em carta, que a saída visava permitir que o novo rei exercesse suas funções "com tranquilidade".
No entanto, a recepção ao livro na Espanha tem sido de forte rejeição e críticas mordazes. A imprensa e a opinião pública espanhola enxergam na autobiografia mais um exercício de autopiedade e vitimização, com uma clara falta de autocrítica genuína sobre os atos que mancharam sua imagem e abalaram a monarquia.
Os pontos polêmicos do livro
Juan Carlos aborda no livro alguns dos capítulos mais espinhosos de sua trajetória, sempre tentando amenizar sua responsabilidade. Um dos momentos mais significativos é quando ele admite, pela primeira vez de forma clara, ter cometido um "grave erro" ao receber 100 milhões de dólares do rei Abdullah da Arábia Saudita em 2008.
O depósito, feito numa fundação no Panamá, coincidiu com a vitória de um consórcio espanhol na licitação bilionária para a construção de um trem-bala entre Meca e Medina. Apesar da admissão, o ex-rei rapidamente tenta suavizar seu papel, comparando-se a um "beduíno no deserto" que acolhe um estranho, e critica a transparência exigida atualmente das figuras públicas.
Outro ponto que chama atenção é a admiração declarada pelo ditador Francisco Franco, que o colocou no trono. Juan Carlos o descreve como "prudente" e "astuto", citando-o 87 vezes ao longo da obra, e chega a argumentar que "houve vítimas dos dois lados da história", em uma tentativa de equilibrar os horrores do regime franquista.
Mágoas familiares e o silêncio do Palácio
No terreno familiar, o tom é de mágoa e ressentimento. Juan Carlos lamenta não receber visitas de sua esposa, a rainha Sofia, com quem segue casado há mais de sessenta anos, e diz não ver seus netos. Sobre o filho, o rei Felipe VI, que renunciou à herança paterna e cortou sua mesada, o ex-monarca afirma: "Entendo que, como rei, ele deva ter uma posição pública firme, mas sofri com a sua insensibilidade".
Ele também direciona críticas à nora, a rainha Letizia, acusando-a de não ter contribuído para a "coesão familiar". Sobre seus casos extraconjugais, tratados como "indiscrições emocionais", ele evita mencionar nomes, como o da alemã Corinna Larsen, mas se queixa de que um "relacionamento específico" foi explorado, causando sérias consequências ao seu reinado.
A resposta do establishment espanhol foi contundente. O jornal El País classificou o livro como um "longo exercício de engrandecimento de si mesmo". O renomado jornalista Iñaki Gabilondo foi ainda mais ácido, afirmando que "o homem que alardeou a harmonia como o grande estandarte de seu reinado tornou-se fonte de discórdia. É um fracasso para toda a vida".
O próprio Juan Carlos, ao final da obra, demonstra uma centelha de esperança, mas também consciência do longo caminho a percorrer: "Será que as coisas mudarão com um governo diferente? Será que terei acesso mais fácil ao Palácio da Zarzuela?". Pelas reações atuais, a resposta para ambas as perguntas parece ser um sonoro não.