Sono bifásico: como nossos ancestrais dormiam em dois turnos e por que isso mudou
A história esquecida do sono bifásico

Em uma noite escura de abril de 1699, na Inglaterra, uma menina de nove anos chamada Jane Rowth testemunhou um evento que mudaria sua vida e, séculos depois, ajudaria a reescrever a história do sono humano. Ela e sua mãe haviam acabado de acordar do que Jane descreveu ao tribunal como o "primeiro sono" da noite. Esse detalhe, aparentemente trivial, encontrado em um antigo depoimento criminal, foi a peça-chave que levou o historiador Roger Ekirch a uma descoberta extraordinária: por milênios, os seres humanos não dormiam em um único bloco contínuo, mas em dois turnos separados.

A descoberta nos arquivos históricos

No início dos anos 1990, o historiador Roger Ekirch, da Universidade Estadual da Virgínia, pesquisava nos Arquivos Nacionais do Reino Unido, em Londres, para um livro sobre a história da noite. Foi ali que ele se deparou com o testemunho de Jane Rowth. A menina descrevia, com naturalidade, como ela e a mãe haviam acordado do seu primeiro sono pouco antes de dois homens misteriosos levarem a sra. Rowth, que nunca mais voltou.

Intrigado com a expressão, Ekirch iniciou uma busca minuciosa. Ele encontrou centenas de referências ao sono bifásico em diários, cartas, livros médicos, peças de teatro e até em obras literárias clássicas, como Os Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer. A prática não era um hábito isolado, mas um padrão amplamente difundido no mundo pré-industrial, da Inglaterra à França (onde era chamado de "premier somme"), da Itália ao Brasil.

Como funcionava a noite bifásica

O ritmo noturno de nossos ancestrais era bem diferente do nosso. Por volta das 21h, as pessoas se recolhiam. Após cerca de duas horas de sono, elas despertavam naturalmente por volta da meia-noite. Esse período de vigília, que durava de uma a três horas, era conhecido simplesmente como "a vigília".

Longe de ser um momento de ansiedade, a vigília era um intervalo produtivo e social. As pessoas se dedicavam a diversas atividades:

  • Trabalhos domésticos, como remendar roupas ou preparar alimentos.
  • Orações e reflexões filosóficas.
  • Socialização com quem dividia a cama.
  • Intimidade física para os casais.

Após esse intervalo, as pessoas retornavam ao leito para o "segundo sono" ou "sono da manhã", que durava até o amanhecer. Esse padrão era tão arraigado que era considerado a norma biológica.

O experimento que comprovou a teoria

Por décadas, Ekirch buscou uma explicação biológica para seu achado histórico. Em 1995, ele a encontrou em um artigo do The New York Times sobre um estudo do psiquiatra Thomas Wehr. Em seu experimento, 15 homens foram privados de luz artificial, com seus "dias" reduzidos a 10 horas de luz.

O resultado foi impressionante. Após quatro semanas, o padrão de sono contínuo dos participantes se transformou espontaneamente em dois blocos separados por um período de vigília. A pesquisa de David Samson na Universidade de Toronto, em uma comunidade sem eletricidade em Madagascar, confirmou mais tarde que o sono segmentado ainda existe onde as noites são verdadeiramente escuras.

O fim de uma era do sono

O desaparecimento do sono bifásico está intimamente ligado à Revolução Industrial. A popularização da iluminação a gás e, posteriormente, elétrica, permitiu que as pessoas ficassem acordadas até mais tarde. A pressão por produtividade e os horários rígidos de fábrica exigiam um despertar matinal único.

Ekirch rastreou, década a década ao longo do século 19, como o primeiro sono foi se alongando e o segundo, encolhendo, até se fundirem no sono monolítico de 8 horas que conhecemos hoje. Essa mudança não foi apenas social, mas alterou nossa biologia e nossa relação com a noite.

Consequências para o sono moderno

Um dos legados dessa transformação, segundo Ekirch, é a ansiedade contemporânea em relação à insônia. Acordar no meio da noite, que antes era normal e até produtivo, hoje é visto como um distúrbio. Conhecer essa história pode trazer alívio para quem passa por isso.

No entanto, o historiador ressalta que não devemos romantizar o passado. O sono atual, em colchões confortáveis, em quartos seguros e sozinhos, sem pulgas ou estranhos ao lado, tem suas vantagens inegáveis. O sono de bloco único pode não ser "natural", mas é um adaptação às condições modernas.

A história do sono bifásico revela que nossos corpos são mais flexíveis do que imaginamos. Ela nos lembra que a forma como dormimos não é uma constante biológica imutável, mas um reflexo profundo da cultura, da tecnologia e do tempo em que vivemos.