
Parece incrível, mas é verdade: o Brasil modernista que estudamos nas escolas está incompleto. Faltam peças importantes nesse quebra-cabeça histórico — e uma das mais brilhantes se chamava Vânia Dantas Leite.
O documentário "Cyclone", em cartaz agora, faz mais do que contar uma história. Ele realiza uma espécie de resgate arqueológico da memória cultural brasileira. A diretora Tatiana Sager — que também assina o roteiro junto com Pedro Bronz — mergulhou fundo nos arquivos empoeirados e nas lembranças quase apagadas para trazer à tona essa figura extraordinária.
Quem foi essa mulher que desafiou o esquecimento?
Vânia não era qualquer uma. Nos anos 1960 e 1970, ela circulava pelos círculos intelectuais mais fervilhantes do país. Era musa, sim, mas muito mais que isso: artista plástica, escritora, cineasta experimental. Uma criadora múltipla que parecia ter nascido em várias épocas ao mesmo tempo.
O curioso — e triste — é que ela mesma parecia antever seu próprio apagamento. Chegou a declarar, com certa melancolia profética: "Serei esquecida". E assim aconteceu. Até agora.
Um trabalho de detetive cultural
O que Tatiana Sager fez não foi simples. Encontrar material sobre Vânia era como procurar agulha em palheiro. Apenas dois de seus filmes experimentais sobreviveram ao tempo — "Cyclone" e "Jardim das Espumas". O resto? Pois é, sumiu. Desapareceu. Virou pó.
Mas a diretora não desistiu. Foi atrás de depoimentos, cartas, fotografias, qualquer vestígio que pudesse recompor esse quebra-cabeça. O resultado é comovente e, por vezes, frustrante — porque nos faz perceber quantas outras Vânias nossa história cultural deve ter engolido.
Ah, e tem um detalhe saboroso: o título do documentário vem justamente de um dos poucos filmes de Vânia que resistiram à ação do tempo. "Cyclone" — um trabalho experimental que já mostrava uma artista à frente de seu tempo.
Por que ela sumiu?
Essa é a pergunta que não quer calar. Como uma figura tão central em seu tempo pode simplesmente evaporar dos registros históricos? Talvez porque o modernismo brasileiro que nos ensinaram sempre teve seus heróis — quase todos homens — e suas musas — quase sempre silenciadas.
Vânia era musa, sim, mas recusava o papel passivo que essa designação normalmente carrega. Ela criava, produzia, pensava, contestava. E talvez essa recusa em se encaixar nos moldes esperados tenha contribuído para seu apagamento.
O filme nos faz refletir: quantos gênios criativos nossa história deixou pelo caminho simplesmente porque não se encaixavam no que era socialmente conveniente?
Um presente para a cultura brasileira
"Cyclone" não é apenas um documentário. É uma correção histórica. Um ato de justiça com uma artista que merece seu lugar na memória cultural do país.
Agora em exibição, o filme nos oferece a rara oportunidade de redescobrir uma voz importante — e nos lembra que a história da arte está cheia de buracos que precisam ser preenchidos.
Quem sabe, após assistir, você não comece a se perguntar: quantas outras Vânias ainda esperam para ser resgatadas do esquecimento?