A diplomata equatoriana María Fernanda Espinosa, uma das vozes mais influentes no debate sobre governança global e mudanças climáticas, alerta em entrevista exclusiva à VEJA que as conferências do clima estão fadadas ao fracasso sem reformas estruturais profundas. Com mais de 30 anos de experiência em negociações multilaterais, a ex-ministra das Relações Exteriores e da Defesa do Equador analisou os desafios financeiros, o papel do Brasil e o futuro da ONU.
Arquitetura financeira ultrapassada
Espinosa foi categórica ao afirmar que o sistema de financiamento climático atual foi concebido para outro século e não atende às necessidades urgentes do presente. Segundo a diplomata, os procedimentos são lentos, os critérios de risco estão antiquados e há pouca criatividade financeira para enfrentar a emergência climática.
"A arquitetura financeira foi desenhada para um mundo com menos riscos, menos choques climáticos e menos urgência", explicou Espinosa. "Destravar isso exige três frentes: repensar o risco, reformar bancos multilaterais e atrair o setor privado com garantias e previsibilidade."
Um dos dados mais alarmantes apresentados pela especialista revela que apenas 3,5% do financiamento climático multilateral chega aos pobres urbanos, com percentual ainda menor quando se considera especificamente as mulheres. Essa desconexão entre ambição e recursos concretos representa um obstáculo real para acelerar a transição necessária.
O papel das cidades e dos povos indígenas
Espinosa destacou o papel fundamental que as cidades estão desempenhando na descarbonização, especialmente durante a recente cúpula do C40 no Rio de Janeiro. Mais de 70% da população mundial vive em áreas urbanas, que são responsáveis por aproximadamente 75% das emissões globais.
"As cidades são a verdadeira linha de frente da descarbonização porque é nelas que as pessoas vivem e onde as emissões acontecem", afirmou a diplomata. "Vi compromissos sérios em temas como mobilidade, transporte público e investimentos em infraestrutura resiliente, não apenas em megacidades, mas também em cidades menores."
Sobre os povos indígenas, Espinosa foi enfática: "Eles não estão à margem da transição; são o centro dela. Não só por uma dívida histórica, mas porque protegem cerca de 80% da biodiversidade global e desenvolvem, há séculos, formas de manejo e adaptação que o resto do mundo tenta aprender agora."
Brasil entre liderança e dependência de combustíveis fósseis
A análise de Espinosa sobre o paradoxo brasileiro - ser visto como líder ambiental enquanto mantém dependência de commodities fósseis - trouxe nuances importantes. A diplomata não enxerga contradição, mas sim a realidade complexa de países que ainda dependem de combustíveis fósseis para financiar políticas públicas básicas.
"Transições são sempre tensas. Exigem escolhas difíceis, especialmente em países muito desiguais", ponderou. "O Brasil tem uma vantagem enorme: ciência, dados, capacidade institucional e a Amazônia como ativo global. Se conseguirem transformar esse ativo em valor econômico de maneira justa, pode redefinir o que é desenvolvimento no século XXI."
Sobre a recente licença concedida à Petrobrás para perfurar na Margem Equatorial, Espinosa lembrou sua experiência com a Iniciativa Yasuní no Equador, que antecipou conceitos que hoje estão amadurecendo, como pagamento por emissões evitadas e compensação por manter petróleo no subsolo.
Futuro da ONU e segurança regional
Como uma das nomes cotadas para suceder António Guterres como secretária-geral da ONU em dezembro de 2026, Espinosa defendeu transformações profundas na organização. "A ONU foi pensada para os desafios de 1945, não para os de hoje", alertou. "Ela reage a crises, quando deveria preveni-las."
Sobre o aumento da violência na América Latina, a ex-ministra da Defesa do Equador argumentou que o crime organizado evoluiu mais rápido que os Estados nacionais e que nenhum país consegue enfrentar esse desafio sozinho.
"A resposta tem que ser regional, articulada e baseada em cooperação real", defendeu. "Isso inclui desde inteligência e tecnologia até diálogo entre países de origem e destino das economias ilícitas. E há também um componente humano fundamental: mulheres e meninas são as principais vítimas do tráfico humano na região."
Espinosa concluiu com um alerta sobre a necessidade de coragem institucional e vontade política para implementar as mudanças necessárias, destacando que o mundo precisa dar um salto quântico para alcançar os US$ 1,3 trilhão por ano que os países necessitam para se adaptar e fazer a transição para uma economia verde.