
Imagine ter que decidir qual recém-nascido merece receber alimento hoje. Essa não é uma cena de filme distópico — é a realidade crua que profissionais de saúde enfrentam diariamente nos bancos de leite brasileiros. Uma situação que dói na alma.
Os números são assustadores. Só no primeiro semestre deste ano, os estoques despencaram mais de 40% em vários estados. Enquanto isso, a demanda por leite humano aumentou quase 15%. Uma equação que simplesmente não fecha.
O Desespero Nos Corredores Das Maternidades
"A gente chega ao ponto de contar mililitro por mililitro", confessa uma enfermeira que preferiu não se identificar — a dor na voz era perceptível mesmo por telefone. "Tem dias que a escolha é entre um prematuro de 600 gramas e outro com complicações cardíacas. Como decidir?"
Não é exagero. Em unidades de terapia intensiva neonatal, cada gota vale ouro. Bebês que nascem com peso inferior a um quilo dependem exclusivamente do leite humano para desenvolver seu frágil sistema imunológico. Sem ele, as chances de infecções graves disparam.
Por Que Chegamos Nesse Cenário?
Ah, os motivos são vários — e mais complexos do que parecem. Primeiro, a queda nas doações durante e após a pandemia criou um buraco difícil de preencher. Muitas mulheres voltaram ao trabalho presencial e simplesmente não conseguem mais doar.
Mas tem mais: os custos dos frascos esterilizados subiram assustadores 200% nos últimos dois anos. Alguns bancos estão reaproveitando embalagens — algo impensável até pouco tempo atrás. A verba federal? Estagnada desde 2022, sem considerar a inflação que corroeu o poder de compra.
E olha só que ironia: o Brasil tem a maior rede de bancos de leite do mundo, com 225 unidades espalhadas por todo o território. Um orgulho nacional que está definhando por falta de apoio.
As Histórias Por Trás Dos Números
Maria Eduarda, 28 anos, doou religiosamente durante sete meses após o nascimento da filha. "Sentia que estava ajudando a salvar vidas", lembra. Mas quando retornou ao emprego como professora, a rotina tornou-se incompatível com as doações. "Me sinto culpada até hoje."
Do outro lado, está a pequena Laura, que nasceu com 28 semanas e pesava menos que um pacote de açúcar. Seus pais testemunharam a diferença que o leite doado fez — ela ganhou peso, superou uma infecção intestinal e finalmente recebeu alta após 68 dias internada.
"Sem essas doações, não sei se ela estaria aqui", desabafa a mãe, ainda emocionada.
O Que Pode Ser Feito?
- Conscientização real — não apenas campanhas bonitinhas, mas informação prática sobre como doar
- Flexibilização no trabalho — licenças maiores para doadoras, horários especiais
- Investimento urgente — em insumos, transporte e profissionais
- Facilitação do processo — algumas redes oferecem coleta domiciliar, mas são minoria
Enquanto isso, nas UTIs neonatais, a vida segue um dia de cada vez. Gotas contadas, esperanças renovadas a cada nova doação que chega. Uma realidade que, francamente, não deveria existir num país do tamanho do nosso.
Pensando bem, talvez a pergunta não seja "como chegamos até aqui", mas "até quando vamos aceitar isso".