Médica venezuelana condenada a 30 anos por áudio crítico no WhatsApp
Médica condenada a 30 anos por áudio no WhatsApp

Uma médica venezuelana de 65 anos foi condenada à pena máxima de 30 anos de prisão por enviar um áudio crítico ao governo através do WhatsApp durante as eleições presidenciais de 2024. O caso de Marggie Xiomara Orozco Tapias tornou-se símbolo da repressão à liberdade de expressão na Venezuela.

O áudio que mudou uma vida

Durante a campanha para as eleições presidenciais de 28 de julho de 2024, Marggie Orozco enviou uma mensagem de voz para um grupo de vizinhos em San Juan de Colón, no estado fronteiriço de Táchira. No áudio de 17 minutos, a médica pedia que as pessoas votassem contra Nicolás Maduro e o responsabilizava pela crise econômica que assolava o país.

Oito dias após as eleições, que consagraram Maduro como vencedor segundo o Conselho Nacional Eleitoral sem apresentação de provas, a polícia apareceu na casa de Orozco. "Alguns policiais chegaram na noite do dia 5 de agosto e disseram à minha mãe: 'Nos acompanhe'. Ela não queria ir, mas os policiais disseram que não estava detida, apenas queriam interrogá-la", relatou Paul Ruiz, filho da médica, à BBC Mundo.

Os familiares ficaram três dias sem notícias da médica. A gravação havia chegado às mãos de apoiadores do governo, que denunciaram Orozco ao Ministério Público após ameaçarem cortar benefícios como a cesta básica subsidiada e o botijão de gás de cozinha.

Condenação histórica por opinião

No dia 16 de novembro de 2024, a juíza Luz Dary Moreno Acosta condenou Marggie Orozco à pena máxima de 30 anos de prisão pelos crimes de traição à pátria, conspiração e incitação ao ódio. A sentença equiparou o caso da médica aos crimes mais graves do código penal venezuelano, como homicídio, sequestro e estupro.

Segundo relatos do filho obtidos através dos advogados presentes no julgamento, a juíza justificou a decisão afirmando que "esses apelos colocam em risco a paz da Venezuela e são o motivo pelo qual o governo dos Estados Unidos quer nos invadir".

O conteúdo específico do áudio incluía um pedido para que a comunidade votasse contra Maduro e "deixasse a sem-vergonhice de apoiar o governo, enquanto seus filhos estão fora trabalhando e o país está caindo aos pedaços". Paul Ruiz admitiu que a mensagem foi "forte", mas negou que constituísse crime: "Ela não saiu às ruas para atirar pedras ou queimar pneus. Nem pediu por uma invasão estrangeira".

Lei contra o Ódio como instrumento de censura

A acusação foi baseada no artigo 20 da Lei Constitucional contra o Ódio, norma que estabelece penas de 10 a 20 anos de prisão para quem "publicamente ou mediante qualquer meio apto para difusão pública fomentar, promover ou incitar o ódio, a discriminação ou a violência".

Organizações internacionais de direitos humanos criticam a lei por ser vaga e abrangente, argumentando que ela pode ser usada para silenciar vozes críticas. Entre 2021 e 2023, a organização Espacio Público registrou pelo menos 22 venezuelanos presos por exercer a liberdade de expressão, muitos deles por conteúdos em plataformas digitais.

O caso de Orozco não é isolado. Marcos Palma, de 50 anos, foi condenado a 15 anos de prisão por um áudio no WhatsApp reclamando da falta de botijão de gás e convidando vizinhos para protestar. Randal Telles, estudante de enfermagem de 22 anos, recebeu a mesma pena por um vídeo no TikTok criticando Maduro e o ministro Diosdado Cabello - sua família alega que a gravação era uma montagem criada com inteligência artificial.

Repercussão internacional e críticas jurídicas

A condenação da médica gerou indignação dentro e fora da Venezuela. Gloria De Mess, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para o país, afirmou que "esse caso evidencia que a falta de independência do sistema de justiça venezuelano está profundamente enraizada e que ele continua a funcionar como parte do aparato repressivo do Estado".

Juristas venezuelanos questionaram os fundamentos legais da sentença. Zair Mundaray, advogado criminal, explicou: "Para que haja crime de incitação ao ódio, a mensagem deve provocar uma expressão de ódio por parte de um indivíduo contra outro. Quem ela incitou? A médica simplesmente expressou seu próprio sofrimento".

Mundaray também contestou a aplicação dos crimes de traição e conspiração: "A conspiração implica em tentar modificar o sistema republicano, mas que ação concreta ela tomou para acabar com a democracia e as instituições? E o crime de traição fala de aliar-se a nações ou inimigos estrangeiros, mas não há relatos de que ela tenha se aliado a alguém".

Nem mesmo problemas de saúde serviram como atenuante para Orozco. A médica sofreu um infarto durante o ano em que esteve presa aguardando julgamento, mas em março a juíza negou pedido de liberdade condicional alegando "risco de fuga" e possibilidade de "influenciar testemunhas".

O caso ocorre em um contexto onde autoridades venezuelanas alertam que a "liberdade de expressão não é um direito absoluto" e intensificam a perseguição a críticos do governo, criando um clima de medo e autocensura que se estende além das fronteiras do país.