O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deu um passo histórico ao reconhecer oficialmente as terras da comunidade quilombola Pitanga de Palmares, localizada no município de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. A decisão, publicada no Diário Oficial da União na quarta-feira (17), chega em um momento de grande simbolismo para a comunidade, que ainda vive o luto pelo assassinato de sua líder espiritual, a ialorixá Mãe Bernadete Pacífico.
Os detalhes da portaria e a divisão da área
A medida está detalhada na Portaria nº 1.516 do Incra. A área total reconhecida é de 10,1 hectares, correspondente ao imóvel conhecido como Fazenda São José. Desse total, uma parte significativa, 7,5 hectares, é de domínio privado, com registros em matrículas imobiliárias. Os outros 2,5 hectares são classificados como domínio público, sem registro, sendo considerados uma área residual possivelmente devoluta do Estado da Bahia.
Segundo a portaria, essa porção pública deverá passar por um Procedimento Administrativo de Discriminação de Terras Devolutas, que ficará a cargo do órgão de terras do governo estadual. Os limites da propriedade foram minuciosamente descritos: ao norte, confronta com um riacho e o Sítio Amaral; a leste, com o mesmo riacho, o Sítio Amaral e a faixa de domínio da rodovia BA-524; ao sul, com a própria rodovia; e a oeste, com uma área de propriedade particular. A portaria entrou em vigor sete dias após sua publicação oficial.
Um território ancestral sob pressão urbana e industrial
O quilombo Pitanga dos Palmares é muito mais do que os 10,1 hectares agora reconhecidos. Com uma extensão total de 854,2 hectares, ele abriga 289 famílias e tem raízes profundas que remontam ao século XIX. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola (Conaq), a ocupação começou após a falência de um grande latifúndio da região, quando os ex-trabalhadores, sem ter para onde ir, se estabeleceram no local, hoje uma área de proteção ambiental.
O século XX trouxe novas pressões. Na década de 1970, a instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari, a apenas 11 quilômetros de distância, impactou o território com dutos de produtos químicos que o cortam. Em 2007, a Colônia Penal de Simões Filho foi construída a quatro quilômetros do quilombo. O crescimento urbano desordenado da Região Metropolitana de Salvador tem sido uma fonte constante de tensão, levando ao empobrecimento das famílias e a um aumento da violência, episódio tristemente marcado pelo crime que vitimou Mãe Bernadete.
Resistência cultural e econômica liderada por mulheres
Apesar dos desafios, a comunidade mantém viva sua cultura e sustento através de atividades econômicas resilientes, muitas delas capitaneadas por mulheres. As artesãs trabalham com a piaçava para criar peças únicas, enquanto bordadeiras se dedicam ao ponto de cruz. Além disso, uma associação robusta, formada por mais de 120 agricultores, é responsável pela produção e comercialização de farinha para vatapá, além de frutas e verduras como abacaxi, banana da terra, inhame e maracujá.
O reconhecimento fundiário pelo Incra representa um marco na luta secular desta comunidade por direitos e pelo território que habitam há gerações. É um ato de justiça que se conecta diretamente à memória de sua líder e reforça a importância da titulação de terras quilombolas como forma de reparação histórica e garantia de um futuro com mais dignidade e segurança.